quarta-feira, outubro 13, 2010

As pérolas do meu pai

As pérolas do meu pai
MICHAEL KEPP - Folha de São Paulo - mkepp@terra.com.br
Ele sabia e adorava provocar risos: o do filho ou o de qualquer outra plateia, porque assim sentia-se amado
MEU PAI era uma figura cujo charme cômico transformava qualquer reunião em um coro de gargalhadas. Seu lado paterno igualmente cativante destilava o que aprendeu na vida em sábios conselhos - óbvios, na maioria. Mas ele tornava tudo memorável com seu fraseado. O riso, meu ou de qualquer plateia, fazia com que se sentisse amado.
Nos meus 20 anos, eu tinha uma namorada que vivia na fossa. Ele pediu que eu fosse mais seletivo: "Nunca se envolva com uma mulher mais deprimida do que você!".
Quando fiz 30, pedi a ele que, ao menos uma vez, me desse um presente que não fosse dinheiro. À noite, ao chegar, dei de cara com uma velha cadeira de barbeiro na minha sala. Depois, papai veio com um sorriso travesso: "Espero que aprenda a não me pedir mais presente".
Também me deu dinheiro, e me disse para eu não menosprezar, afinal, era mais duro de conseguir do que a cadeira. "Dinheiro é só outra forma de energia", disse. E, como não guardava, morreu com pouco no banco.
Depois que fiz 40 anos, meu pai me visitou no Rio.
Em uma festa, cativou amigos cariocas bilíngues, contando histórias reais de suas desventuras sexuais.
Numa delas, estava na cama com a namorada quando uma tempestade causou um pico de energia que passou pelo vibrador (ligado à tomada), dando nela um tremendo choque. No dia seguinte, comprou um vibrador a pilha para reconquistar a namorada ainda traumatizada.
Então descreveu uma perua desconhecida, sentada ao seu lado num banquete, que avançou o sinal, subindo o pé pela perna dele. Para evitar que ela chegasse ao alvo, disse: "Devo avisar que uma disfunção sexual me obrigou a implantar uma prótese, e você está quase apertando o botão de inflar".
As duas histórias deixaram meus amigos gargalhando e me fizeram corar. Meu pai disse: "Não tenha vergonha do que eu faço ou digo.
Tenho muito a ver com quem você é, mas você não tem nada a ver com quem eu sou".
Precisava desse conselho 30 anos antes. Estava num acampamento, e três dos 1.500 escoteiros se afogaram.
Meu pai ouviu pelo radio a notícia das mortes não identificadas. Dirigiu quatro horas até a tenda principal e mais meia hora pela trilha escura até a clareira onde minha tropa acampara. Saiu do carro, veio até a fogueira, piscou para mim e trocou umas palavras com o chefe da tropa. Depois, falou sobre o que um filho significa para um pai.
Enquanto todos os olhos se viravam para mim, eu queria me enfiar debaixo da pedra em que me sentara. Depois do desabafo, papai me abraçou e foi para casa. "Por que meu pai tinha de vir aqui?", choraminguei a um amigo.
Ele respondeu: "Essa é a questão, seu pai foi o único a vir". Ali a ficha caiu. Papai, sem conselho ou comédia, tinha tomado o caminho mais curto até o meu coração.
MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 27 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

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