sábado, outubro 09, 2010
Micro-ondas Fernanda Torres – VEJA Rio - 13/10/2010
Crônica
Fernanda Torres – VEJA Rio - 13/10/2010
Micro-ondas
No passado, a culinária, assim como a moda, era privilégio da nobreza. Hoje, o requinte à mesa encontra-se ao alcance de qualquer mortal e até os congelados contam com supervisão de um chef, reparem. Eu evito comida congelada. Só gosto de ervilha, que fica mesmo muito boa naqueles saquinhos plásticos.
Nasci com joelhos juntos e as pernas desgraçadamente em xis. Desde pequena, fui aconselhada pelo pediatra a não engordar para não piorar o processo. Para quem matava os rissoles de galinha da lanchonete da piscina do Tijuca Tênis Clube com o prazer de quem está ingerindo um manjar, ter que fechar a boca foi um baita sacrifício. O resultado foi que me tornei absolutamente intolerante com a mediocridade na cozinha. Emburro se como mal e me irrito com os pequenos assassinatos do paladar. Detesto excesso de manteiga, molho rosé, hambúrguer de caixinha, brócolis cozido em demasia, peixe muito temperado, molho de tomate em lata, pão esfarelento, salsicha industrial... a lista não tem fim.
Sou bastante conservadora quando o assunto é comida. Desprezo o exagero dos molhos à francesa, a nouvelle manga com gergelim, não tenho nenhum apreço pelas espumas e venero as receitas mediterrâneas, com seus ingredientes simples e saudavelmente combinados. No topo dos meus preconceitos que, confesso, quase beiram a obsessão, se encontra este amigo da dona de casa moderna: o micro-ondas. A primeira vez que vi um bicho desses foi em uma feira de utilidades domésticas com meu pai. O cozimento instantâneo sem a presença de fogo nos deixou boquiabertos. E mais ainda fiquei quando me contaram a velha tragédia que, aliás, já entrou para o folclore, mas ninguém teve coragem de confirmar, do cachorrinho de madame que explodiu porque a patroa tentou secá-lo no micro-ondas.
Eu tenho medo daquele treco que faz vuuuuuuuuu... Um medo atávico, o mesmo que os índios sentem de máquina fotográfica. Eu acredito que o micro-ondas rouba a alma dos alimentos. Ouvi boatos de que não se deve abrir a porta do micro-ondas posicionado em frente ao aparelho. Segundo a crença, suas partículas ainda ativas escapam no momento da abertura do compartimento e atiçam as células do corpo, provocando sabe-se lá que tipos de terríveis moléstias. As poucas vezes que recorri ao método, abri a portinha com o braço esticado, me esquivando do gerador de calor. Depois, esperei a radiação atômica se dissipar e, só então, peguei com receio o pratinho fervente. Jamais me acostumei com o resfriamento da refeição aquecida graças à fricção subatômica. No início, a comida não esfria de jeito nenhum mas, de repente, atinge uma frigidez cadavérica, endurecendo em uma fração mínima de segundos. É estranhíssimo.
Sou adepta do vapor. Rápido, leve, tradicional, limpo e hidratante. Por falar em tradição, fiquei entusiasmadíssima quando li, há alguns anos, que o slow cook, antítese das ondas tecnológicas, havia entrado em voga. Eu adoro os assados e guisados de onde a carne sai desmanchando, derretida nos caldos e temperos do cozimento demorado. Me lembra cozinha de avó, real, rica e suculenta. Pois estava eu em Nova York lançando O que É Isso Companheiro? quando, em um jantar com a Lucy e o Luiz Carlos Barreto, li no cardápio a opção Slow Cooked Kid. Um pouco chocada com a ideia de que cozinhavam crianças devagarzinho em Manhattan, perguntei o que era kid para o garçom. Era bode, me explicou ele. Quando chegou o meu bode cozido lentamente, senti um cheiro estranho no ar. Polida, encarei o pedido sem reclamar. Luiz Carlos, nordestino curioso, pediu para provar a versão americana da iguaria de sua terra natal. Quando sentiu o mesmo gosto esquisito, me mandou parar de comer, chamou o garçom e repetiu algumas vezes entre o inglês e o português retado: “ The bode is no good. You don’t know how to remove the nhaca from the bode. You have to remove the nhaca”.
Ele tinha razão, americano não sabe tirar nhaca de bode. Pois eu gosto disso: fogo, vapor, bode sem nhaca, comida de verdade, caldos deliciosamente nutritivos e, de preferência, sem agrotóxico. Forno? A lenha, silvuplé.
Fernanda Torres e-mail: fernanda.torres.vejario@gmail.com
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