sábado, outubro 09, 2010

No sarau do Totonho Ou 'aquele cara se parece com o Bill Pullman'

No sarau do Totonho
Ou 'aquele cara se parece com o Bill Pullman'
Arnaldo Bloch – O Globo
Sempre tinham me falado do sarau do Totonho Villeroy, que conheço através da galera do tempo de faculdade (menos o trabalho do que a ótima figura, falha minha).
Apesar de amante da música, sempre tive uns grilos com a palavra sarau. Talvez porque tenha ido a muitos saraus ruins. E os saraus bons que frequentei não se chamavam “saraus”: era um pessoal que levava som quando estava a fim no meio de situações que não se propunham necessariamente a ser musicais. Então fiquei com a ideia de que sarau, pra ser bom, não pode ser sarau.
Mas, na madrugada de sábado para domingo, quando me levantei pra fazer um bom pipi e acabei fazendo também um pit stop no computador, percebi que o momento era chegado: uma mensagem de Totonho no bate-papo do Facebook me convidava para mais um sarau. Dizia que tinha a ver com o festival de cinema, tinha sido organizado para os convidados estrangeiros do evento darem uma passadinha lá e testemunharem a xipontaneidade da turma. Totonho, na mensagem, dizia que os saraus dele varavam a noite, às vezes duravam 24 horas, que eu podia chegar à hora que fosse que estava rolando. Era aqui perto. Decidi.
Chuveirinho, jeans, camiseta, tênis sem cadarço, largadão. E fui.
Quando cheguei tinha um cara de 19 anos tocando monstruosamente o piano da casa. Monstruosamente no sentido de monstro sagrado. Danilo Andrade. Virtuosismo com bom gosto, sem exibição de teclas por segundo. Desenvolvendo ideias a partir de temas conhecidos ou não. Havia uma gaita. Uma percussão. Larguei meu sobretudo (sim, havia um sobretudo sobre o todo), tirei os óculos para ver tudo mais flu, fui à varanda, conheci um pessoal, passei pela matriarca (acho que a mãe do Totonho) que, numa cadeira de rodas, fumava um cigarrinho, e, de repente, vi a cantora Suely Mesquita e a pianista (e compositora e arranjadora) Délia Fischer vindo lá de dentro.
Suely fora um amor meu de adolescência, quando era uma das musas do Coro Come. Eu não conseguia tomar coragem para falar com ela. Então, um dia, subi ao palco após um show, entreguei-lhe rosas e saí sem dizer nada. Outro dia, pelo Facebook (de novo...) ela me disse que lembrava dessa situação remota e bizarra.
A Délia, minha atual professora de piano, deu bronquinha: — O senhor falta à aula, diz que está com dor na cervical mas vem ao sarau às três da manhã! — A dor foi no meio da semana. E passei metade do sábado estudando.
Délia estava feliz que, lá dentro, num dos quartos, tinha conseguido conversar com o Milton Nascimento. Mas estava de saída, foi de carona com Suely, e fiquei de novo sozinho, circulando pelo salão. Minutos depois passou o Milton Nascimento, ele mesmo, aquele trem-fantasma-gigante, movendo-se lenta e altivamente na direção da porta como uma entidade dessas com quem os índios conversam quando tomam chá.
No fundo, avistei a Carla, amiga também dos tempos da faculdade. Ela olhava intrigada para um sujeito que, já estando ali desde mais cedo, também ia se preparando para sair.
— Esse cara é os cornos do Bill Pullman. Sósia total. Não é, Arnaldo? — Quem é Bill Pullman? — Ô, Arnaldo, não conhece o Bill Pullman? — Não sou muito de reparar em homem.
— O Bill Pullman, do “Independence Day”! — Ih, Carla, não vi “Independence Day”.

— Você não viu “Independence Day”? — Não. Com licença.
E segui rumo ao interior da festa profunda, explorando todos os quartinhos, banheiros e varandas de vista feérica para a madrugada do Altíssimo Leblon, lá pras bandas do Federal, que anunciava para dali a pouco o amanhecer. Quando voltei à sala carregando uma taça de espumante rosé (como, se eu não tinha ido à cozinha e não havia garçom?), cruzei de novo com a Carla.
— Arnaldo, sabe da maior? — Não. Eu não sei de nada.
— O cara era o Bill Pullman! O próprio! — É, tinham me falado que vinham uns artistas do festival.
— E sabe o que mais? A Irène Jacob também estava aí.
— Opa, essa eu conheço. Não é uma das musas do polonês? — Essa mesmo.
— Putz, e eu não vi.
— Perdeu, playba.
— Cacilda, daqui a pouco aparece o Vinicius.
O som continuava, Totonho levando alguma coisa de Toninho Horta no violão. Na varanda, a Carla me apresentou à Claudia Diniz, que tinha dado uma sensualíssima canja de Janis minutos antes e estava se preparando para cantar mais.
Quando ela se juntou à turma do som, avistei, bem na meiuca de tudo, uma daquelas cadeiras de balanço feitas de um tipo de palha trançada e penduradas no teto. Concluí que ali seria meu ponto privilegiado de contemplação. Afundei-me lá. Um mulherão passou e foi me avisando: — Cuidado que essa cadeira é perigosa.
Logo entendi o que ela quis dizer: giratória até dizer chega, aquela cadeira era mágica. Ao sabor de leves movimentos do corpo, como se a gente estivesse ao mesmo tempo em órbita e no centro gravitacional da festa, passa-se de um rosto para um corpo, de um copo para a vista na janela, da janela para o piano, do piano para o teto, ou simplesmente se fecha os olhos e se navega ao balanço do biorritmo.
Só saí da cadeira quando, ao colocar os óculos, vi, no horizonte, que o contraste de uma embarcação próxima às ilhas com o céu ia diminuindo.
A luz do dia chegava, e um sujeito muito jovem cantava, emocionadíssimo, pela segunda vez, a “Lisbela”. Um sujeito se sentou ao meu lado e, olhando para o jovem cantor, comentou: — É tão bacana isso, quando o cara tem uma coisa assim pura, que vem de dentro. Não é? Você não acha? Juro que eu queria responder, ser simpático, mas, simplesmente, não soube o quê. O sujeito insistiu.
— Você não acha? Não adiantou. Eu não sabia responder à coisa assim formulada. Apertei as mãos do sujeito com a maior simpatia e o abracei.
— Valeu, acho que tá na minha hora! Fui me despedir de quem ainda restava e agradeci ao Totonho a distinção. Ele me levou até a porta. Antes de ir à rua, fiz uma pausa no playground, de onde se avistava, do Leblon a Ipanema, a faixa reta de areia e o marzão. Do outro lado, a Lagoa, o Cristo, a Gávea. Uma rajada forte de vento atravessou o lugar e levou para longe umas lágrimas felizes que começavam a escorrer.
E-mail: arnaldo@oglobo.com.br

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