terça-feira, outubro 05, 2010

O DNA de Néstor Kirchner

O DNA de Néstor Kirchner
04/10/2010 - Mariano Grondona – O Globo Opinião
O motivo pelo qual Néstor Kirchner levou vantagem tanto sobre seus rivais quanto sobre seus aliados foi o fato de poder desconcertá-los de forma contínua com manobras imprevistas, conservando em suas mãos a vital iniciativa. Maquiavel aconselhava o príncipe a aturdir os grandes e o povo com uma ousada sucessão de projetos inesperados, para mantê-los dependentes dele. Não há dúvida de que Kirchner age de maneira diferente se comparado aos atores que o rodeiam e o enfrentam, e consegue assim reduzir uns e outros a uma atitude de expectativa, a um tipo de passividade que condena seus aliados à submissão e seus rivais ao vício fatal do “antikirchnerismo”, cujo infortúnio consiste, como o “antiperonismo” dos anos 50, em agir só por reação, como se fazer oposição às iniciativas de Kirchner — sem oferecer alternativas — fosse sua única saída.
Dizemos que alguém é insólito quando sua conduta é tão rara que a consideramos única. Kirchner atua de modo insólito. Mas não são insólitos apenas sua ação, seu estilo. Ele mesmo o é. Seja devido a um código genético peculiar ou a uma infância infeliz, essa pessoa que chamamos Kirchner não é comparável a qualquer outra. Por isso, surpreende. Por isso gozou até agora do poder de iniciativa.
Mas, para se opor a ele com eficácia, não bastaria reagir tardiamente a cada uma de suas transgressões, como as outras pessoas que consideramos “normais”, porque Kirchner, simplesmente, não é normal. Segue sua senda exclusiva. Esta originalidade não provém de uma estratégia trabalhosamente forjada, mas das entranhas de seu próprio ser. Enquanto alguém não decifrar seu DNA, não conseguir desentranhar as raízes de um caráter que não é negociável, que é irrenunciável por ser mais forte que seu portador, o ex-presidente continuará sendo o homem forte da Argentina.
De nada valerá sequer condenálo como perverso, como fazem seus opositores. O único método para neutralizálo é entendê-lo; é recorrer às intrincadas dobras de seu código genético para descobrir o antídoto que poderia anulá-lo.
À força de frustrações e desgostos, poder-se-ia dizer que tanto a oposição como os observadores independentes avançaram laboriosamente nessa tarefa crucial. Para apoiá-la com fundamento, seria útil recorrer ao famoso livro “1984”, no qual seu autor, o inglês George Orwell, decifrou o código genético do autoritarismo. Publicado em 1949, quando o stalinismo avançava para a dominação de meio mundo, “1984” advertiu que a porta de entrada do totalitarismo é a tergiversação na linguagem política, para incentivar os fanáticos e confundir os ingênuos.
Quando falavam de “guerra”, os protagonistas de 1984 a chamavam de “paz”; quando falavam de “opressão”, chamavam de “liberdade”; e quando falavam de “discriminação”, chamavam de “justiça”. O poder absoluto não era, segundo eles, a mobilização de um mando despótico, mas a obra fraterna do Grande Irmão, que vigiava zelosamente os cidadãos até na intimidade de suas casas.
Kirchner abriga em sua mente, de modo comparável, seu próprio dicionário distorcido. Como tantos outros políticos, busca o poder. A luta pelo poder é, para os políticos “normais”, uma disputa enérgica mas, no fundo, amistosa, esportiva, quase um jogo — porque sabem que quem prevalecer terá somente um poder limitado pelos demais poderes e ligado ao vencimento inexorável de um prazo. Essa mesma disputa, para Kirchner, é uma verdadeira guerra, tudo ou nada, no decorrer da qual a vitória, e a derrota, só podem ser absolutas. Diziam os romanos em suas guerras: “Ai dos vencidos!” Por isso Kirchner chamou seu movimento de Frente para a Vitória, como se obtê-la fosse seu único e exclusivo objetivo, sem considerações por ideais como liberdade, desenvolvimento ou justiça social.
Quando disse que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, Carl von Clausewitz, o maior estrategista do Ocidente, supunha que primeiro se deve buscar a paz na política, na diplomacia, e que só no fracasso delas os exércitos se poriam em marcha. Se tivesse que comentar Carl von Clausewitz, Kirchner diria que a política, mesmo na democracia, “é a continuação da guerra por outros meios”.
MARIANO GRONDONA é jornalista.

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