quarta-feira, setembro 29, 2010

DECLARAÇÃO DE VOTO Estatura moral e simbólica é justamente o que Marina me parece ter de sobra

Declaração de voto
Estatura moral e simbólica é justamente o que Marina me parece ter de sobra
Francisco Bosco – O Globo
F. Scott Fitzgerald, o autor de “O grande Gatsby”, pensava que “uma inteligência de primeira linha” deveria ter “a habilidade de sustentar duas ideias opostas na mente, ao mesmo tempo, e ser capaz de operar desse modo”. Concordo. Procuro ter uma visão ambivalente e complexa da realidade; desconfio das perspectivas demasiadamente seguras e unilaterais. O cenário político brasileiro, às vésperas das eleições, exige um modo de pensar fitzgeraldiano. Tentarei exercê-lo aqui, apesar do pouco repertório que tenho nesse campo.
De início, o que caracterizou o governo Lula, no conjunto de seus dois mandatos? A referência à tese de André Singer, ex-porta-voz do presidente Lula, me parece incontornável.
Para ele, houve, nesse período, um realinhamento do eleitorado brasileiro: a classe média afastou-se do PT, cuja base de votos passou a ser a classe mais baixa, grande maioria do eleitorado.
Parte da esquerda não suportou a decepção com o alinhamento de Lula às diretrizes principais da macroeconomia no período FHC: altos superávits primários, juros elevados, autonomia do Banco Central. Ao final de 2003, os dissidentes fundaram o PSOL. O escândalo do “mensalão”, em 2005, acrescento eu, terá contribuído para afastar do PT eleitores de sensibilidade republicana, e foi uma ferida até hoje não cicatrizada na estrutura moral do partido.
Entretanto, segundo Singer, desde o final de 2003 o governo Lula lançava as bases do que futuramente lhe asseguraria altíssimos índices de aprovação junto às classes mais baixas: o Bolsa Família, um vasto programa de crédito e, em seguida, um aumento progressivo e significativo do salário mínimo. O conjunto de medidas elevou bastante o poder aquisitivo dos mais pobres, fazendo surgir um poderoso mercado interno de massas, movimentando a economia brasileira.
Assim, ao final do mandato, apesar do mensalão, Lula sagrou-se reeleito. De lá para cá, a economia tem crescido com constância, milhões de empregos foram gerados e o Brasil atravessou sem maiores turbulências a crise sistêmica do capitalismo em 2008. Tudo isso me parece irrefutável.
Mas o lulismo segundo Singer tem seu outro lado da moeda. É o lulismo da condescendência ao velho fisiologismo da política brasileira, da omissão diante de questões morais que exigem uma postura clara e inflexível, do culto à personalidade, das tentações autoritárias de controle da imprensa e das artes. Além disso, há ainda o tão propalado aparelhamento do Estado, que parece ser a versão petista, mais ideológica, do tradicional “Estado patrimonial de estamento”, como diria Raymundo Faoro.
Tudo isso vem sendo compendiado, com exatidão e clareza, nas colunas de Merval Pereira, desde 2002, e agora reunidas no livro “O lulismo no poder”. Merval me parece imprescindível, mas discordo quando ele afirma que não houve reformas estruturais no governo Lula: não consigo ver uma reforma mais fundamental que a diminuição drástica da pobreza.
Acredito que o governo Dilma manteria as virtudes principais do governo Lula, mas temo pelo agravamento dos seus defeitos, dadas as condições de alta popularidade e ampla aliança política.

Tenho pavor de totalitarismos.
Uma das frases-guias da minha vida é aquela de Thomas Jefferson: “Prefiro as inconveniências decorrentes do excesso de liberdade às decorrentes de um grau pequeno dela.” Por isso, penso que a alternância de poder é importante para a democracia.
O que fazer, então? Aqui devo dizer que estou entre aqueles para os quais o Brasil fez progressos extraordinários no período FHC-Lula. Sou democrata convicto e de forte tendência reformista. Reconheço que a perspectiva reformista é facilitada numa situação, como a minha, de classe média (embora, segundo Singer, o eleitorado de baixíssima renda também deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem). E reconheço ainda que parte da esquerda encara o reformismo lulista como uma decepção diante do sonho de justiça social mais rápida e igualitária.
O que fazer? A candidatura de Serra padece de uma dificuldade que o psicanalista Tales Ab’Sáber descreveu com exatidão: Lula, ao realizar um governo “de grande liberdade liberal”, ao seguir, e talvez aperfeiçoar, a linha macroeconômica do governo FHC, “roubou a verdadeira base social tucana”.
Não vejo, com efeito, em que a candidatura Serra se diferencia fundamentalmente da de Dilma.
Marina Silva, entretanto, sinaliza com uma diferença importante. Se o governo Lula se definiu por uma profunda transformação material, sobretudo entre as classes mais baixas, definiuse também, pelas razões já expostas e ainda outras, por certa precariedade moral e simbólica. Estatura moral e simbólica é justamente o que Marina me parece ter de sobra. Não apenas pela centralidade da questão ambiental, mas por sua altivez e elegância e pelas declarações tão equilibradas como incisivas. É óbvio que sem uma base material digna, sem justiça social econômica mais profunda, não se pode pleitear um enriquecimento simbólico.
Mas esse rumo acredito que o país não perderá, seja com quem for.
Tudo somado, então, apesar de reconhecer os feitos, notáveis, da gestão Lula, e enxergar virtudes na figura política de Serra, meu voto vai para a candidata que me parece sinalizar para um projeto civilizatório que ultrapasse o desejo, humanamente acanhado, de comprar um iPhone ou uma TV de plasma de 30 polegadas.

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