domingo, outubro 03, 2010
Bonde do terror
Bonde do terror
JOÃO XIMENES BRAGA – O Globo
“Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lheaacute; se prefere a narração ou uma descarga de pontapés.
Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.”
O parágrafo acima é de Machado de Assis, na crônica “Como comportar-se no bonde”, de 1883 a.c. (antes do celular), quando o Rio ainda parecia destinado a se tornar uma metrópole civilizada em vez de um balneário de enorme beleza e discutível aprazibilidade.
A julgar pelo cronista m a l h u m o r a d o , e s s e aglomerado de gente mal educada que se autodesigna povo brasileiro — e no mais do tempo se comporta como uma vara de porcos grunhidores — já estava exercendo seu esporte favorito: confundir matraqueado com simpatia.
Quase 150 anos depois dessa crônica de Machado, já me conformei com o carioca não respeitar o vizinho, seja o do banco do ônibus, o de mesa, o do prédio. O que ainda me causa pasmo é não respeitar a si mesmo.
Não se trata de não levar em conta a privacidade e a individualidade alheias, mas de não considerar as próprias.
Não interessa se o assunto é familiar, é entre amigos, se é futebol, dinheiro, sexo: a conversa nunca é íntima.
Ela é sempre aos berros, mesmo pelo celular. O grande lema do carioca é sempre se expor ao ridículo em altos decibéis, não importa se há alguém ouvindo na janela logo acima ou na mesa ao lado. É um reality show diário enfiado goela do espectador abaixo, sem a opção de mudar de canal ou ler um livro.
O segundo lema do carioca é: se não há ninguém com quem falar, assovie desafinadamente.
Assim você continua sendo barulhento e desagradável, mas pode dizer pra todo mundo que é gente boa porque gosta de samba e bossa nova.
O carioca só é suportável de iPod. Machado ainda não sofria com celulares e não tinha a proteção do iPod, e certamente não foi obrigado a passar na calçada diante do Rio Design Center.
O centro de compras no Leblon se acha no direito de instalar caixas de som sob sua marquise. Se você é cliente, azar o seu, entrou lá por sua conta e risco, que seja massacrado por uma lounge music de péssimo gosto. Mas quem está na calçada não tem nada a ver com isso.
O exemplo do Rio Design é o mais grotesco, mas não é único. Há vários restaurantes pela cidade que espalham caixinhas de som vagabundas pela área externa, agredindo os transeuntes.
Música ambiente em espaço interno é igual a TV em bar, problema de quem está disposto a consumir sofrendo.
Na rua, devia ser motivo para o dono do estabelecimento ser preso e exposto de cuecas na Praça XV para levar cusparadas dos passantes.
Pior é admitir que é uma deformação cultural.
Como não se tem noção de individualidade, não se compreende que gosto musical é pessoal.
A quintessência disso é a jequice das academias locais, que pararam naquele conceito de academia boate dos anos 80. Hoje, se você vai a qualquer academia de uma cidade civilizada em país idem, o som ambiente, se existe, é baixíssimo, é cada um com seu MP3. Na Zona Sul do Rio, toda academia cara e metida a besta obriga seu cliente a ouvir música de boate gay de Madureira, custe o que custar, doa a quem doer.
O carioca só é suportável de iPod. Na academia, nem assim. Triste toda vida na citação é nos lembrar que em 1883 o transporte público no Rio era melhor.
E-mail para esta coluna: jxbraga@gmail.com
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