domingo, outubro 03, 2010
Gênio geni
Gênio geni
José Miguel Wisnik – O Globo
Neymar é de certo modo o primeiro jogador na História do futebol que já existia antes de existir
Já se falou muito, não sei se o suficiente, sobre a celeuma Neymar. Seria bom retomar a breve e agitada história dele até aqui, desde antes da celeuma.
Não se pode esquecer que Neymar é de certo modo o primeiro jogador na História do futebol que já existia antes de existir. Desde 2005, mais ou menos, já se sabia que o Santos preparava um garoto de 13 anos para a sua esperada estreia. Os garotos geniais são cevados hoje muito cedo para o mercado futebolístico futuro, comprometidos com clubes, representantes, empresários que correm cada vez mais desenfreadamente para os nascedouros lucrativos. Muitos acabam sendo retalhados por direitos percentuais pertencentes a vários interessados, e só lateralmente aos clubes.
Neymar foi para a Espanha e só não ficou no Real Madrid por um acidente, porque não quis. Quando estreou no Santos, aos 17 anos, em maio de 2009, no meio do segundo tempo do jogo contra o Oeste de Itápolis, a sua entrada em campo já foi recebida no Pacaembu como uma consagração antecipada. O frisson antecedia o primeiro toque na bola. Mas não demorou para que ele correspondesse à expectativa ao receber um passe pela direita, aplicar um drible inusitado no adversário que se apresentou para dar o combate e cruzar uma bola cheia de efeito na forquilha.
A quina da trave, a bola que não entrou, a dúvida sobre se aquilo era um cruzamento ou um chute a gol, tudo isso me pareceu menos importante, na hora, do que o tom relaxado do drible, de quem joga sem esforço, a movimentação esperta e a clareza precoce dos espaços do campo. Foi ness e m o m e n t o que o Santos começou quase instantanea mente a deixar de ser um time tedioso e a desenhar o que aconteceria um ano depois. A experiência me diz que um jogador diferenciado prefigura de imediato o que vai ser, como um poeta, que a gente identifique por um único verso. Mesmo que isso demore depois a se realizar efetivamente. Na ocasião, gostei de ler na coluna do Tostão que a sua primeira impressão de Neymar foi semelhante à que teve de Zico e de Romário.
Sempre lembrando, no entanto, que um craque virtual só se torna um craque efetivo se cruzar as mais extremas vicissitudes e se suar, dizia Tostão, o corpo e a alma.
Como se sabe, as atenções que Neymar foi despertando com a eclosão do time do Santos, ao lado de Ganso e depois de Robinho, fizeram com que ele passasse a ser mais marcado e mais visado, em todos os sentidos. A encenar faltas recebidas, várias vezes, mas recebendo-as na verdade muito mais do que encenando, e logo de adversários que se alternavam em aplicá-las para fugir dos cartões.
Estratégias especiais de marcação e um cerco mais direto e maciço em campo são de praxe nesses casos. Mas há outras marcações mais insidiosas que se agregam, além da perseguição citada.
Uma delas é a da mitificação em tempo real pela qual passam os acontecimentos na “cultura contemporânea”.
Me refiro, por exemplo, ao fato de que o primeiro gol de Neymar, uma semana depois da sua estreia, já foi noticiado no ato como histórico, já antevisto como se a posteriori, como se já o olhássemos do ângulo teleológico de uma futura somatória de todos os seus feitos. É ou não é uma inversão perversa? A fetichização está inscrita na raiz do acontecimento, e os acontecimentos passam a ser devedores dessa mesma fetichização cega que passa a cercar cada passo do jogador. Junto com ela vem a crítica e a suspeita de que tudo não passa de uma armação mercadológica, excessiva, projetada em cima de um jogador fabricado que não merece a fama apressada com que é coroado.
Para completar, no entanto, a complicação e a complexidade da situação, ali está um jogador de fato “fabricado” por toda uma expectativa prévia, mas com um talento efetivamente correspondente às melhores promessas. Um capital virtual a se atualizar, usando aqui a palavra “capital” com toda a extensão analítica e irônica que ela pode ter: os investimentos milionários do mercado futebolístico, envolvidos com as marcas e o merchandising, com os interesses dos grandes clubes europeus, com a s p r e s s õ e s q u e c e r c a m desde já a formação da seleção brasileira de 2014, e o talento demonstrado em campo como um capital simbólico, como o brilho de uma trilha a ser trilhada, sujeita embora a todos os acidentes de curso.
É difícil imaginar que isso siga um curso “normal”, no sentido de pacífico e ameno.
As cobranças e as pressões, dentro e fora do campo, são muitas, e muitas delas são novas, no quadro do futebol atual. Tendo perdido seus mais importantes companheiros de clube, vendidos para o futebol europeu ou tirados de campo por contusão (no caso de Paulo Henrique Ganso), Neymar “surtou” no papel de protagonista, não se admitindo obedecer a ordens sensatas do técnico. De certo modo foi um comportamento típico de adolescente problemático em sala de aula ou em casa, com a diferença de que a vida familiar e escolar de Neymar foi desde cedo projetada para dentro do campo de futebol, com visibilidade e repercussão extremadas.
Me espanta que os adultos, a quem cabia dar limites firmes e claros, se confundiram nos papéis, perderam entre eles os limites, com a queda do técnico Dorival Junior como inesperada consequência.
O técnico René Simões veio despropositadamente falar na criação de um “monstro”. O que temos é um nó geral, com muitos participantes, todos não sabendo o que fazer com os gênios geniosos que a sociedade e a vida estão criando.
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