domingo, outubro 03, 2010
Entre o amor e a repulsa
Entre o amor e a repulsa
Carol Bensimon - O Estado de São Paulo
Uma Mulher, do húngaro Péter Esterházy, examina a incoerência das relações
Acreditar que, em uma relação a dois, amor e ódio se entrelaçam até se tornarem indissociáveis não é propriamente uma novidade: esse jogo de extremos pode ser encontrado tanto em grandes clássicos da literatura como nas mais descartáveis comédias românticas. Fazer com que tal lógica soe convincente e não tenha gosto de déjà vu, no entanto, é mérito de poucos. Em Uma Mulher, primeiro livro do húngaro Péter Esterházy, incoerências dos relacionamentos são exploradas em 97 relatos que começam (salvo pouquíssimas exceções) ora com “Há uma mulher. Ela me ama”, ora com “Há uma mulher. Ela me odeia”.
Não é um livro de contos, tampouco um romance, mas uma espécie de prisma de 97 faces e muitas mulheres. Misteriosas, prosaicas, sublimes, tudo ao mesmo tempo, elas são observadas pela lente do fascínio e da incompreensão de um hipotético homem (ou serão vários?) O interessante é que o narrador de Esterházy jamais idealiza a figura feminina, ao contrário; destacando suas imperfeições físicas, ele cria uma série de retratos singulares, nos quais nunca deixa de colocar humor, como ao descrever o corpo de uma mulher com excesso de peso: “O traseiro também não é feito de duas meias esferas (firmes, etc.) e o limite que as separa é uma coisa arredondada, nada de doces Campos Elísios ou de memórias toscanas delicadas, mas sim ignorância, peso (…), terrenos baldios (…) onde é impossível alguém se localizar”.
Péter Esterházy, uma celebridade em seu país, é apontado, há anos, como forte candidato ao Nobel. No posfácio de Uma Mulher, o tradutor Paulo Schiller o compara a dois grandes pilares da história da literatura húngara, Mór Jókai e Gyula Krúdy. De fato, o escritor tem nas construções inusitadas, no ritmo calculado e nas reflexões pontuadas pelo mais puro deboche suas grandes marcas. Um exemplo? “Há uma mulher. Acontece que não nos vimos durante anos. Quero dizer, enquanto escovávamos os dentes passaram inesperadamente vinte e oito anos.” Ou ainda: “Eu costumo também conversar com os seios dela, chamo um de você, o outro de senhor.”
Que o leitor, portanto, não espere encontrar propriamente uma trama em Uma Mulher. O interesse está nessas figuras femininas envoltas em uma bruma de linguagem, filtradas pelo olhar de um homem que não vê mais diferença entre ódio e amor, entre adoração e repulsa.
CAROL BENSIMON É DOUTORANDA EM LITERATURA PELA UNIVERSIDADE DE PARIS 3 E AUTORA DE PÓ DE PAREDE (NÃO EDITORA) E SINUCA EMBAIXO D’ÁGUA (COMPANHIA DAS LETRAS)
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