domingo, outubro 03, 2010

'Poema para ser lido na posse do presidente', por Alberto Pucheu

'Poema para ser lido na posse do presidente', por Alberto Pucheu
Ando pela calçada da rua em que moro,
em direção à Cobal, por exemplo,
onde diariamente compro alguma coisa
apenas para descansar um pouco do trabalho
cotidiano que faço em casa, e,
ao passar por uma pessoa, sou para ela
o que ela é para mim: alguém
que sobe ou desce uma rua, nada mais.
Talvez, neste momento, eu seja
também para mim e ela também para ela
o que somos um para o outro: alguém
que se esquece de onde está vindo
e aonde está indo, de seu nome, de seu trabalho,
alguém que sobe ou desce uma rua, nada mais.
Ou algo mais, ou menos, não sei, que vai
comendo o nome, o trabalho, o parentesco,
as demandas que recaem sobre nós,
largando-os pouco a pouco pelas latas de lixo
penduradas nos postes, deixando-os cair
ao meio-fio, por entre as rodas dos carros,
cumprindo o destino comum de todos dejetos.
Andando pelas calçadas, subindo-as
ou descendo-as, indo ou voltando não importa
para onde ou de onde, enquanto andamos,
desta vez não temos um encontro marcado
com nós mesmos. Mais persistentes
ou mais ausentes, mais barulhentas ou silenciosas,
diversas vidas vêm e vão em um só corpo,
aparecendo sempre alguma quando alguma
é requisitada. Mas há momentos em que,
entre a casa e os ofícios da cidade, entre
qualquer compra, por exemplo, na Cobal,
e o uso da compra ao chegar em casa,
antes de qualquer contrato, de qualquer direito,
de qualquer convenção, do livre arbítrio,
do estado civil, antes do tamanho dos ossos,
do formato da orelha, das impressões digitais
dos dedos, das extensões do rosto, da fotografia
em 3X4 ou em 5X7, das fotografias de frente
e de perfil, antes das imagens exclusivas da íris
e das retinas e dos escaneadores 3D,
das câmeras que nos gravam nos bancos
ou pelas ruas, antes dos DNAs guardados
em algum arquivo nacional, antes da beleza
e da feiúra, do código de barras na nuca
– com o qual sonhei ontem – disponibilizando
os corpos a uma máquina que teimasse
em reconhecê-los por um número qualquer
pelo qual jamais nos reconheceríamos,
antes desses e milhares de outros modos
de sermos apreendidos, os ócios vazios
de um corpo abandonado (uma vida nua
ou um posto de pura distração
em que os viventes se fazem esquecidos,
ou quase isto) sobem e descem uma rua,
nada mais. São corpos matáveis, como
ao fim de uma partida de futebol,
como durante um assalto, como na fila
de um hospital, como por bala perdida
ou certeira da polícia e dos traficantes,
como por acidentes, pelas drogas, pela fome...
São corpos gloriosos, como durante
uma partida de futebol, como durante
uma semana de carnaval, como em um show
de rock, em uma mesa de bar com amigos,
em um mergulho diurno ou noturno no mar,
como quando fazem amor ou quando,
mesmo sem o fazerem, se amam
ao longo da vida ou por apenas
alguns instantes. São corpos dúbios,
quando dançam o funk sob a mira
dos AR-15, quando fogem dos tiros
saltando atleticamente por telhados,
caixas d’água, correndo por becos,
quando se explodem na terra ou no ar
contra o concreto de um edifício
ou quando se jogam das alturas
do mesmo edifício. São corpos funcionais,
como nas caixas lotadas dos supermercados,
dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto
do sol, dentro da cozinha da minha casa,
ao meu ouvido, na central de telemarketing.
São corpos... São corpos que, em algum momento,
esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua,
nada mais. Subindo ou descendo uma rua,
atestamos então este hiato de desconhecimento
entre o corpo abandonado e as diversas vidas
que o tentam colonizar, entre a vida nua
e as vestimentas vivas que a recobrem,
entre a vida crua e o que dela pode ser cozido,
entre a vida aberta e a vida vivida. Atestamos
a fenda deste hiato, uns emigrantes da distância
neste hiato de que não podemos nos afastar,
uns estrangeiros, uns viajantes, uns forasteiros,
uns gringos, uns bárbaros neste espaço
que se serve das palavras para falar
em uma língua estrangeira, uns índios
neste espaço, nesta picada, nesta clareira,
uns berberes e o vão do deserto esgarçando
os berberes, uns esquimós e o vazio da neve
ampliando os esquimós, uns pescadores
dispersos pela luz, tragados por este espaço
diluído entre a areia e os sóis dos Lençóis,
o espaço em que o explosivo queima
entre a genitália e a cueca do nigeriano
no avião. Atestamos este espaço das palavras
que se servem das palavras para falar.
Apátridas, não temos por pátria a língua portuguesa
nem outra nos seria natural. Nascemos
sem língua, abertos a qualquer jargão
que em nós quisesse se desdobrar, nascemos
sem povo, abertos a qualquer bando
que em nós quisesse se desdobrar,
nascemos sem lei, uns bandidos, uns canhotos,
uns lobisomens, uns burros, uns jumentos,
umas vacas, umas piranhas, uns veados,
umas éguas, umas antas, uns porcos,
umas mulas, umas bestas, umas baleias,
umas cachorras, uns tubarões, uns animais,
uns bichos, umas bichas, umas feras,
uns selvagens, uns fora-da-lei
abandonados a qualquer lei
que nos pudesse governar, abandonados
a qualquer lei que tivéssemos de desregrar.
Sobreviventes, descendemos de uma classe
de épocas perigosas praticamente esquecidas,
exilada da cidade dentro da cidade,
e, mesmo que ser, estar, saudade, cidade,
floresta, rio, mar, sertão, natureza
e outras palavras nos digam intimamente respeito,
navegamos, apátridas, a abertura, o sem,
o não, o nem, o a- que não nos largam.
Por mais que não queiram, trazemos conosco
os espaços vazios a distorcerem as possibilidades
que cotidianamente se oferecem
do que nós somos, do que é a água
do rio, do mar, da cidade, do país,
do mundo, e, por mais que não queiram,
nossa saliva é o suor das palavras não-ditas,
e, por mais que não queiram,
misturamos o separado, trazemos conosco
a cidade e a natureza ferina, a poesia
do dedo que falta na mão do presidente.
Publicado no O Globo – 03/10/2010 – Prosa Online

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