A escritora argentina Beatriz Sarlo, que é uma das convidadas de honra do evento literário alemão e lança no Brasil a obra "Modernidade Periférica" |
domingo, outubro 03, 2010
"Buenos Aires olha para o século 20"
"Buenos Aires olha para o século 20"
Estrela da Feira de Frankfurt, na Alemanha, Beatriz Sarlo diz que São Paulo representou sua ideia de modernidade
MARCOS FLAMÍNIO PERES – FOLHA DE SÃO PAULO - LITERATURA
DE SÃO PAULO Buenos Aires perdeu o bonde da história. Sim, ainda é relativamente segura e homogênea, dispõe de bom transporte público e de uma vida cultural vibrante. Mas ninguém olha para ela enxergando o futuro, mas apenas o século 20.
É o que defende Beatriz Sarlo, a mais influente intelectual argentina e uma das estrelas da maior feira de livros do mundo, que começa na quarta-feira em Frankfurt.
Ela está lançando no Brasil "Modernidade Periférica", um retrato do processo de modernização por que passou o país nos anos 1920-30.
Mas sua tese mais forte, desenvolvida a partir dos escritos do crítico brasileiro Roberto Schwarz, é de que a capital portenha foi o epicentro de uma "cultura de mescla" em todo o continente.
Assim, por trás do surto imigratório, de urbanização intensa, alfabetização em massa e crescimento da mídia impressa se escondia uma contradição de fundo -a inadequação entre ideias importadas da Europa aclimatadas à força em um ambiente político, cultural e social que lhe era estranho.
Sarlo também bate pesado na tentativa da presidente Cristina Kirchner de cercear a atuação do grupo Clarín, o maior de mídia do país. O governo, diz ela, "não teve problemas com grupo enquanto este era seu aliado. Só passou a chamá-lo de monopolista quando perdeu seu apoio, em 2008".
Folha - Por que tantas semelhanças entre Buenos Aires e São Paulo nos anos 1920-30? Beatriz Sarlo - Uma das experiências da modernidade que mais me marcou foi ter chegado a São Paulo em meados dos anos 1960. Era apenas uma estudante e ainda não conhecia Nova York. São Paulo me pareceu a "verdadeira" cidade moderna. Também me parecia que, como gesto vanguardista, de performance estética e moral, São Paulo tinha caráter mais de ruptura, menos comprometido com a tradição.
A "cultura de mescla" a que a sra. se refere pode definir toda a América Latina -e não só a cultura argentina? Define todo o continente, sem dúvida, com mostram os estudos pioneiros de Antonio Cornejo Polar (para a cultura andina), Ángel Rama (para toda a América), Octavio Paz e Roger Bartra (México) e Antonio Candido (Brasil). O que Roberto Schwarz assinalou no ensaio "As Ideias Fora do Lugar [em "Ao Vencedor as Batatas", ed. 34], é importante para articular melhor a questão da mescla cultural. Em cada região da América Latina, as ideias europeias de misturam dentro de marcos culturais e sociais diferentes.
A Argentina era uma república liberal, governada por elites oligárquicas que, diferentemente do Brasil, aboliu a escravidão em 1813. Dessa república foram excluídos os povos americanos, que tiveram suas terras expropriadas. Dizer "cultura de mescla" não significa muito se não se precisar que elementos se mesclam e em que contextos político-ideológicos.
Onde Buenos Aires se situa na América Latina atual? Não é uma cidade globalizada do futuro; é uma grande cidade do presente. Não tem a vitalidade e a desordem da Cidade do México nem a exuberância capitalista de São Paulo nem o apelo modernista de Brasília. É relativamente homogênea, com grande presença de classe média e razoável transporte público. Culturalmente, é vital e de reflexos rápidos. Mas esses são traços de uma modernidade tardia, que remetem mais ao século 20 que a utopias ou distopias.
Como se articulava a relação entre campo e cidade? O país cresceu devido às vantagens comparativas para a agropecuária. As terras, extensas, planas e muito férteis, não precisavam de grandes investimentos nem de trabalho intensivo. Daí o crescimento populacional ter ocorrido sobretudo nas áreas urbanas. Além disso, os latifúndios agrários impediram que boa parte dos imigrantes se instalasse no campo.
Como aquela época prefigurou a Argentina atual? A Argentina do século 20 foi marcada por golpes de Estado. Julgava-se que ocorreria a dissolução da nação caso não se reprimissem aquilo que se chamava na Europa de repúblicas de massa.
Jornais e revista foram fundamentais para a modernização da sociedade da época. Como vê hoje o embate entre o governo Kirchner e a mídia? O êxito do processo de alfabetização, que ocorreu muito cedo nas cidades, proporcionou à imprensa e à indústria cultural um público capacitado, produzindo um círculo virtuoso.
Hoje, os jornais impressos perderam para a internet centenas de milhares de leitores, e suas versões digitais incorporam formatos novos -blogues, fóruns, chats, comentários de leitores, links para o Facebook e Twitter.
Contudo, a agenda ainda se fixa na versão impressa (lida pelas elites) e daí rebate nas outras plataformas. Quanto ao atual conflito com a imprensa, minha opinião é de que os grandes jornais não devem controlar canais de TV. Essa concentração vertical está proibida em países como os EUA, que vigiam atentamente a liberdade de informação.
MODERNIDADE PERIFÉRICA
AUTOR Beatriz Sarlo
TRADUÇÃO Júlio Pimentel Pinto
EDITORA CosacNaify
QUANTO R$ 55 (480 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
RAIO-X
BEATRIZ SARLO
VIDA Nasceu em Buenos Aires em 1942
FORMAÇÃO Em 1978, foi cofundadora da revista "Punto de Vista", referência para os intelectuais do país. Lecionou literatura argentina na Universidade de Buenos Aires por 20 anos
OUTRA OBRA "Paisagens Imaginárias" (Edusp)
Argentina é o país homenageado na feira, que começa na quarta.
DE SÃO PAULO
A Feira de Livros de Frankfurt (Alemanha), que começa na próxima quarta e segue até o dia 10, é o maior balcão de negócios de livros -impressos e digitais- e direitos autorais do planeta.
Mas é também fórum privilegiado para seminários e debates sobre temas tão variados quanto educação infantil, tradução e e-books.
Com mais de 7 mil expositores de cem países, tem como país tema este ano a Argentina -que antecede o Brasil, convidado de 2013.
Os critérios de escolha, porém, atendem não tanto à geopolítica, mas, sobretudo, lembra a crítica Beatriz Sarlo, "a uma estratégia multicultural". Pois, afirma ela, "é isso o que funciona no mercado hoje -ou, pelo menos, é isso o que interessa aos editores para exportar e importar livros e traduções".
Essa é a razão por que já foram convidadas tanto a China quanto uma pequena comunidade cultural e linguística como a Catalunha.
No entanto, mais que realizar negócios, o mérito da Feira de Frankfurt é reunir celebridades literárias. Estarão lá o alemão Günter Grass -Prêmio Nobel de 1999-, o americano Bret Easton Ellis e o best-seller inglês Ken Follett.
Seu "Queda de Gigantes" (ed. Sextante, R$ 59,90, 912 págs.) teve lançamento mundial na semana passada com tiragem inicial de 1 milhão de exemplares.
O mais aguardado, porém, é Jonathan Franzen, que conseguiu tanto emplacar a capa da "Time", a revista semanal de informação mais influente dos EUA, quanto agradar publicações altamente intelectualizadas do naipe de "New York Review of Books" e "London Review of Books".
Seu recente "Freedom" (liberdade), que sai no ano que vem no Brasil pela Cia. das Letras, vem se juntar ao já celebrado "Correções" -lançado em 2001 pela mesma editora (R$ 72, 584 págs.)- e joga mais pressão sobre a Academia Sueca. A instituição tem por hábito anunciar o Nobel de Literatura durante os dias de feira.
O único ponto contra Franzen é o de ser americano - que vêm sendo pouco agraciados com o Nobel da área.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário