domingo, outubro 03, 2010
Democracias turbulentas
Democracias turbulentas
Caso equatoriano revela a fragilidade institucional que atinge países da América do Sul
Fernando Eichenberg e Mariana Timóteo da Costa – O Globo
Duzentos anos depois do início de sua independência — a maioria, inclusive, comemorando o bicentenário este ano — países da América do Sul ainda demonstram dificuldades em consolidar sua democracia por meio do fortalecimento de instituições locais.
O caso mais recente, o do Equador, em que o presidente Rafael Correa ameaçou dissolver o Congresso após seu governo mergulhar numa crise, mostra, segundo especialistas, que o processo ainda pode ser longo.
Desde a redemocratização, em 1979, o Equador mostra-se muito volátil politicamente, situação agravada com o forte peso que os militares exercem na política. Tanto que os rumores de golpe contra Correa, na semana passada, só foram descartados quando o chefe das Forças Armadas foi à imprensa declarar que apoiava o presidente. Ao lado do Equador, em maior ou menor grau, podem-se incluir Bolívia, Venezuela, Argentina, Colômbia e Peru na lista de países em que o poder central (o Executivo) desempenha um papel “autoritário e de interrupção sistemática — ou tentativa de — do funcionamento das instituições, o que acaba esvaziando o processo democrático”, acredita Antônio Celso Alves Pereira, professor de Direito Internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
— Com o fim da mais recente era das ditaduras (em 1983 caiu a última, a argentina), havia uma esperança de que a situação melhorasse. Houve avanços, mas também retrocessos: o Correa e o (venezuelano) Hugo Chávez, por exemplo, subiram ao poder prometendo reformas importantes, mas seus governos acabaram aderindo a um personalismo que os tornou antidemocráticos — avalia Simón Consalvi, ex-chanceler venezuelano e analista político.
Outro caso, lembra Pereira, é o drama do novo peronismo na Argentina”.
— Ninguém encontra uma saída para a Argentina, cujo casal Kirchner se alterna no poder e coloca, toda hora, instituições como a Justiça e a liberdade de expressão à prova. Faz parte da loucura argentina ir às ruas manifestar contra os abusos às instituições, mas, ao mesmo tempo, escolher governantes autoritários pelo voto — lembra o jurista.
Educação e partidos na raiz do problema
Interamericano, centro de estudos de relações entre os EUA e a América Latina e o Caribe, com sede em Washington, tem uma tese: os países mais estáveis antes do processo de redemocratização são também os mais estáveis agora. Ele cita Equador ou Bolívia como países que tradicionalmente nunca foram capazes de implantar e consolidar um sistema político com habilidade para poder administrar e resolver seus diferentes problemas nacionais. A Argentina , segundo ele, também é um caso problemático.
A mulher e o marido (Cristina e Néstor Kirchner) governando o país como eles fazem, isso sugere um certo grau de desordem política, não? — questiona. — E isso vem de anos.
Segundo Antônio Celso Alves Pereira, a questão da democracia frágil pode ser relacionada a várias causas: ausência de estruturas partidárias fortes e divergentes entre si que estimulem o debate e o recrutamento político; economia instável; oligarquias ainda instaladas sem interesse em ver seus países progredirem; e debilidade do sistema educacional, que deixa uma fatia significativa do povo “sem instrução nem capacidade de bem eleger seus governantes”.
Simon Consalvi vê a situação de Equador, Bolívia, Venezuela e Argentina como as piores. Se bem que faz ressalvas quanto ao presidente boliviano, Evo Morales, que, apesar de flertar com o autoritarismo e a vontade de perpetuar-se no poder, pela primeira vez “deu ao povo uma voz”.
— A Constituição da Bolívia, ao contrário da equatoriana e da venezuela, precisava mesmo ser reescrita.
Morales está refundando o país e isso é louvável — concorda Pereira.
Peter Hakim lembra que os países de maior fragilidade política são, ao mesmo tempo, os que têm os presidentes mais populistas.
— Onde há instituições fracas, as pessoas querem um líder para resolver os seus problemas e os do país.
Michael Shifter, professor de Política Latino-Americana na Universidade Georgetown, de Washington, lembra que é difícil fazer generalizações sobre o processo de democratização não apenas na América do Sul, mas na América Latina como um todo. Porém, a crise equatoriana, segundo ele, expõe e revela esses profundos problemas de governança democrática.
— E a questão econômica também é um fator importante para isso. Vide o caso equatoriano, cuja crise institucional piora quando a economia vai mal. Os casos do Peru e da Colômbia, países que vêm atraindo investimentos estrangeiros, também estão melhores institucionalmente. Uma coisa está muito ligada a outra — acredita.
O Peru — depois do desastroso primeiro governo de Alan García e, depois, de Alberto Fujimori, que deu um autogolpe e fechou o Congresso — vive uma fase de recuperação institucional que começou no governo de Alejandro Toledo e, agora, na volta de Alan García, cuja segunda gestão têm características bem diferentes da primeira.
O resultado é que o país deve crescer mais de 6,5 % este ano, um dos maiores índices da região.
A Colômbia, cuja tradição desde a época colonial era prestigiar, pelo menos mais do que os vizinhos, as suas instituições, também mostra-se recuperada das tentativas recentes de Álvaro Uribe de passar por cima das decisões da Justiça — tentando, entre outros desvios, mudar as leis para concorrer a um inusitado terceiro mandato. Mas o país ainda enfrenta desafios como a punição de políticos envolvidos com os paramilitares e casos como as escutas telefônicas, que respingaram no governo.
Segundo Shifter, alguns países resistem melhor do que outros a pressões e conseguem desenvolver melhor seus órgãos legislativos e jurídicos.
— No Brasil, no Chile ou no Uruguai se pode notar um certo grau de previsibilidade, em que se buscam políticas mais estáveis e instituições de governo mais fortes.
Ao mesmo tempo, o analista americano aponta casos de maior hibridez, como o do México, em que avanços políticos coabitam com a emergência da violência provocada pelos cartéis de drogas em regiões do país, um obstáculo para o processo democrático.
— Penso que é preciso recortar o continente e analisar separadamente cada caso.
Mas uma coisa é certa: os riscos para a democracia ainda são grandes na região.
Os analistas, no entanto, concordam num ponto. Há uma menor tolerância, em toda região, a golpes de Estado.
Na semana passada, o próprio ministro Celso Amorim justificou os rápidos movimentos da Chancelaria brasileira e das de outros países da região em relação à crise no Equador como uma tentativa de “não cair em uma situação como a de Honduras”. No ano passado, a demora dos governos locais em reagirem ao golpe contra Manuel Zelaya foi determinante para que o presidente, eleito, nunca mais conseguisse voltar ao poder.
— Mas, mesmo nesses casos, há uma contradição típica da cultura política latina: alertar tanto para um golpe que não era golpe, como ocorreu com Rafael Correa no Equador na semana passada, pode acabar fortalecendo internamente e exaltando um presidente extremamente autoritário.
Não sei se foi bom o Brasil, a Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e a OEA (Organização dos Estados Americanos) condenarem um golpe que não houve — polemiza Consalvi.
Para o analista, há ainda uma outra contradição — e, na linha de frente, o Brasil que, ao mesmo tempo em que condena qualquer tentativa de golpe, mostra-se permissivos com regimes que abusam da Justiça, dos tribunais eleitorais e não promovem a liberdade de expressão, como o de Chávez.
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