domingo, outubro 03, 2010
Efêmera
Efêmera
Arnaldo Bloch – O Globo
A arte de escapar, na calada, por um instante
Outro dia soube, através do meu Facebook, que 23 amigos aniversariam esta semana. Ao mesmo tempo, tive que pagar contas, tratar de questões relacionadas com o carro e com o amor, pedir perdão, ir às aulas de piano, constatar a completa ausência de renovação no debate político e explicar à minha avó as razões de eu ser quem sou. Assim corre a vida, de efeméride em efeméride. Só os grandes bruxos conhecem o segredo para, na calada da noite, escapar à grade dos dias, com suas mídias e suas perfídias, e encontrar uma janela, viajar pelo absoluto por um instante efêmero (note que o efêmero se opõe à efeméride!).
No resto do tempo, noves fora a profissão, cumprimos datas. As festivas, as fúnebres, as cívicas e as puramente comerciais, que honram os pais, as mães, as crianças, os namorados, as secretárias, os benfeitores e os filhos da puta, inclusive os que amamos.
Os grandes bruxos, nessas horas, terão o seu modo de mandar tudo às favas e, das datas, usufruir somente o azul do mar, ou dormir, sem culpa, o sono dos injustos. Senão, com o espírito cativo e o coração apertado, amargarão a impossibilidade de vagar por aí e, portanto, detestarão a cidade, amaldiçoarão a vida e desejarão a morte de si e dos outros — de que riem eles, afinal? De réveillon a réveillon, de carnaval a carnaval, de Páscoa a Páscoa, de corpus a corpus, de São a João, vamos às lojas e compramos coelhos, ovos, fantasias, perus, bacalhaus e bonecas que dão leite e choram. E há os aniversários. Dos próprios, dos outros, dos amigos, dos chatos. E também dos filhos e das mães dos chatos. Casórios, batizados, festas de crianças, formaturas, posses, bota-foras ocupam mil e uma casas da folhinha que jaz, entupida, na lateral da geladeira. As contas, atrasadas ou em dia, exigem toda uma concentração, uma tablatura, para não perder o compasso do empobrecimento periódico, ou do enriquecimento neurótico.
E vamos lá de novo às lojas, com o sempre nobre intuito de descobrir o objeto de desejo mais secreto, o bibelô que mais tem a ver com o homenageado. Por momentos teremos até a ilusão de que sacamos o presente certo na hora certa, mas a verdade é que todos sonham, mesmo, é com um cheque gordo.
“Melhor seria ter me dado uma flor” — diz meu pai, quando julga um presente desprovido de valor, pecuniário ou sentimental. Eu acredito nisso. Às vezes dar uma única e maltratada flor, colhida de um bueiro, grita mais alto que aquele ganso de cristal que estava no mostruário de uma dessas papelarias que não vendem papel, ou de uma tabacaria de shopping.
Uma flor, o trabalho singelo de colhê-la, resulta de um impulso antigo, praticado desde tempos findos, quando não havia lojas.
Mas não. A gente prefere debruçar-se sobre as listas. As listas de internet, as listas da Roberto Simões, as listas da PQmeP. E somos instados a pagar um almoço na Quinta da Mãe Joana em Óbidos, mas pode também ser uma panela de pressão. Os mais diligentes e resignados vão se fartar: que delícia saber que hoje, hoje mesmo, os pombinhos vão comer um crème brûlée naquele bistrozinho por minha conta! E que vou receber — ô sorte! — uma foto do casal lambendo a colher, tudo graças ao meu depósito on-line na lista da lua de mel.
Há os lançamentos de livros. Como se não bastasse a extensão das filas, onde velhinhos com artrose sofrem como numa procissão, surgiu, recentemente, a moda insultuosa de autores carimbarem a dedicatória (umas três variações de texto). Ou seja, a pessoa se locomove, paga o preço do livro, amarga duas horas na fila, e o autor não se dá ao trabalho de olhar sua cara e gastar o punho com meia dúzia de palavras. Quando isso acontece comigo, largo o exemplar na mesa e vou embora, nem peço o dinheiro de volta.
E há a vida astral. Muitos organizam cadernos ou arquivos eletrônicos para não esquecer o dever de dizer “tudo de bom” nas correntes certas, de arrumar o seu feng shui de acordo com o momento, e, sobretudo, saber em que casa do cacete está seu ascendente.
Chegará o dia em que planejaremos, num gráfico, o dia da trepada (de acordo com a grade de compromissos) e faremos estimativas do índice de orgasmo desejado, realizando balanços mensais comparativos, perfazendo o histórico de nosso gozo. Projetaremos feijoadas em terceira dimensão (os arquitetos serão os grandes chefs caseiros) e calcularemos, de acordo com fórmulas baixadas no iPhone, o fator alfanumérico de bacon para um perfeito equilíbrio dos nossos ovos.
Por isto, ouça aqui o grande bruxo: olhe em torno e responda quantos deveres o cercam, além dos profissionais. Qualquer ato devido ou indevido que envolva agenda, gastos, telefonemas, mensagens, orações, culpa, humilhação, encenação, subserviência. Some e tente chegar a um número anual. E, então, responda: quanto tempo livre resta para o espírito viver, nos anos, poucos ou muitos, que faltam para o fim? Ah, o efêmero....
E-mail: arnaldo@oglobo.com.br
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