O Congresso Tiririca
Uma pesquisa exclusiva ÉPOCA/Ibope ajuda a entender por que o palhaço cantor virou o símbolo das eleições para deputado e senador
Ricardo Mendonça e Victor Ferreira (texto) e Filipe Redondo (fotos). Com Mariana Sanches - Revista ÉPOCA
Desde o início da propaganda eleitoral na TV, o palhaço Tiririca, nome artístico do humorista Francisco Oliveira Silva, de 45 anos, candidato a deputado federal em São Paulo pelo PR, repete dois slogans que viraram as marcas de sua campanha. O primeiro é “Vote em Tiririca. Pior que está não fica”. O segundo é “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”.
O próprio sucesso eleitoral de Tiririca, um dos prováveis campeões de voto para deputado federal, sugere a nulidade do primeiro bordão. Com uma campanha rica e organizada, Tiririca é incapaz de defender ou formular minimamente qualquer proposta e debocha acintosamente do sistema eleitoral.
Cerca de 60% dos eleitores acham que arrumar emprego, ajudar aliados e promover eventos de lazer são funções de um deputado federal
Só 13% valorizam em primeiro lugar os parlamentares que estudam e participam das votações importantes do país
73% afirmam que o total de deputados federais e senadores da República deveria diminuir
Estima-se que, em números absolutos, Tiririca poderá ser o parlamentar mais votado do Brasil, com potencial para atingir mais de 1 milhão de sufrágios. Esse índice seria suficiente para levar em sua garupa mais quatro ou cinco deputados para Brasília, beneficiando candidatos menos votados da coligação, que inclui PT, PCdoB, PRB e PTdoB.
Enquanto o primeiro bordão de Tiririca tende a ser desmentido pelos fatos, o segundo resume com precisão um tipo de deficiência que parece generalizado entre os eleitores. Uma pesquisa inédita feita pelo Ibope sobre o grau de conhecimento a respeito das funções de deputados e senadores mostra exatamente aquilo que Tiririca não para de repetir: a maior parte das pessoas aptas a votar não sabe bem ao certo para que serve um congressista.
O questionário da pesquisa foi elaborado por ÉPOCA com o auxílio do cientista político Fernando Abrucio e de profissionais do Ibope. A pesquisa mostra que a maioria dos eleitores é capaz de identificar corretamente algumas atribuições dos parlamentares. Quase 90% concordam que “votar pela criação ou reforma de leis” é função de um deputado. Além disso, 83% responderam positivamente à questão sobre a fiscalização do governo federal pelo Legislativo. Mas, em geral, prevalece na cabeça do eleitor a confusão.
Eis as principais constatações:
* 75% dos eleitores afirmam que “realizar obras para a população” é uma das funções inerentes ao cargo de deputado federal. Definição, contratação e execução de obras são atividades reservadas aos Poderes Executivos (prefeituras, governos estaduais e federal). Um deputado tem poder extremamente limitado nesse aspecto. Ele pode, em tese, apenas influenciar na confecção de uma parte do Orçamento da União, o que, de certa forma, acaba influenciando na realização de uma obra. “A maioria dos eleitores pensa que é função do deputado fazer obras porque existem as emendas individuais dos parlamentares ao Orçamento. Enquanto elas vigorarem, a confusão vai continuar”, diz o cientista político Octaciano Nogueira, da Universidade de Brasília (UnB). O alto índice de confusão ocorre porque as emendas individuais permitem aos candidatos a deputado prometer obras que eles não serão capazes de entregar, como pavimentação de estradas e construção de estações e até linhas de metrô.
* Para 61% dos eleitores, é função do deputado “ajudar seus aliados de campanha em negócios com o governo”. Apenas 33% discordam dessa afirmação. A conhecida “retribuição” que alguns políticos eleitos costumam dar aos financiadores de campanha é uma das tradições mais danosas da política nacional, fonte de inúmeros casos de corrupção, favorecimento e empreguismo. É por conta desse tipo de problema que se discute a adoção de financiamento público de campanhas, uma forma de livrar os políticos da dependência quase que total de financiamentos privados. O índice de eleitores que não percebem a gravidade dessa prática é alto mesmo entre os mais instruídos. No universo dos que têm ensino superior, 54% afirmaram que é função do deputado, sim, ajudar seus aliados de campanha em negócios estatais.
* 59% dos eleitores acreditam que “promover eventos sociais e de lazer para a população” está entre as funções do deputado. É comum encontrar políticos que conseguem boa votação com patrocínios a times amadores de futebol, bailes de formatura ou festas juninas. Essa tradição antiga, que nada tem a ver com as funções do mandato parlamentar, continua a vigorar porque é vista com bons olhos pelos eleitores, conforme mostra a pesquisa. No Nordeste, três de cada quatro eleitores concordam com a afirmação embutida na pergunta. Na semana passada, a reportagem de ÉPOCA submeteu parte do questionário do Ibope ao candidato Tiririca. Ele também respondeu que é função de um deputado apoiar eventos sociais.
* Para 58% dos eleitores, uma das funções de um deputado federal é “ajudar seus eleitores a conseguir emprego”. Gabinetes de deputados federais, estaduais e vereadores costumam receber diariamente inúmeros pedidos de emprego, público ou privado. “É uma prática tão comum que o resultado alto não me surpreende”, diz Márcia Cavallari, diretora do Ibope. “Basta passar um dia numa Câmara de Vereadores para perceber esse tipo de movimentação.” Nem sempre as pessoas estão atrás de emprego público. Muitos imaginam que o político tem influência suficiente para convencer empresas privadas a arrumar uma vaga para seus indicados. É comum encontrar políticos que percebem esse fenômeno como uma oportunidade eleitoral. São os que acabam transformando o gabinete em agência informal de empregos, com cadastro de vagas e banco de dados de pedintes. Trata-se, evidentemente, de uma clara distorção da função parlamentar. Entre os eleitores que ganham até um salário mínimo, 77% acreditam que essa é uma das atribuições de um deputado.
A questão de influência parlamentar na elaboração do Orçamento reaparece com destaque em outra pergunta feita pelo Ibope. Quando questionados a respeito do que mais valoriza num deputado, 39% afirmam que é justamente a capacidade de mudar o Orçamento para levar obras para sua cidade. “Isso mostra que há uma visão muito municipalista. O eleitor pensa só sobre o lugar onde vive”, diz o cientista político Octaciano Nogueira. “Somados aos que valorizam a distribuição dos remédios para os pobres, dá 55% dos eleitores. A maioria, portanto, vê o deputado como um meio de obter benefícios. Isso revela uma péssima cultura cívica, pois as pessoas não sabem distinguir entre níveis municipal, estadual e federal. Tudo isso é produto de pouca informação sobre política.”
A candidatura do palhaço Tiririca deslanchou ao surfar nesse ambiente de desinformação. Nas últimas semanas, seu projeto ganhou proporções que poucos imaginavam ser possível. “Não lembro de ter visto algo que foi tão longe em termos de galhofa”, diz o cientista político Jairo Nicolau. “Já houve outros palhaços, mas Tiririca encaixou de tal modo um discurso que eu não sei nem explicar.” ÉPOCA acompanhou a agenda de rua de Tiririca por dois dias. A estrutura é de uma campanha abastada e bem arquitetada, completamente diferente da imagem humilde projetada pelo artista. Durante as carreatas, um grupo de assessores e mais de 30 cabos eleitorais fantasiados de Tiririca acompanham o candidato. Dois deles relataram ganhar R$ 1.800 por três meses de trabalho. Para levar a tropa, Tiririca tem a sua disposição um micro-ônibus, duas vans, uma Kombi, uma camionete e um carro de passeio. O material impresso é farto. A última prestação parcial de contas, do dia 15 de setembro, mostra que Tiririca já arrecadou quase R$ 600 mil. O PR, chefiado em São Paulo pelo deputado federal Valdemar Costa Neto, réu no processo do escândalo do mensalão (esquema de financiamento ilegal de políticos e partidos aliados do governo Lula no Congresso), afirma que são recursos do partido. Tiririca declarou à Justiça Eleitoral ter patrimônio zero. Desconfiado de uma fraude, o Ministério Público Eleitoral o denunciou por omissão de bens.
Na terça-feira, equilibrando-se em cima de uma camionete, Tiririca percorreu o centro das cidades de Ibiúna e Cotia, na Grande São Paulo. Seu filho Éverson Silva, que também é humorista, acompanhava o pai pedindo votos no microfone. “Vote no deputado vestido de palhaço, muito melhor que esses palhaços vestidos de deputado”, diz. A mensagem tinha aparente boa aceitação do público que acenava para Tiririca e reflete a desconfiança generalizada dos eleitores em relação aos políticos e ao Congresso.
Na pesquisa Ibope, essa imagem negativa dos parlamentares aparece em outro indicador: 73% dos eleitores consideram excessivo o número de congressistas (513 deputados federais e 81 senadores) e defendem sua redução. Não é um resultado surpreendente, na opinião dos estudiosos: “Isso é resultado da ênfase que se dá ao plenário vazio, aos altos salários dos parlamentares, à percepção de que eles não fazem nada”, diz a cientista política Argelina Figueiredo, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) . “Se as pessoas não se sentem representadas, elas não acham que vale a pena o dinheiro que é posto no Congresso.” É por essas e outras que Tiririca virou o símbolo da eleição.
Parlamento para quê?
A pesquisa realizada pelo Ibope a pedido de ÉPOCA mostra que o conhecimento dos eleitores a respeito do funcionamento do Congresso Nacional é confuso. A maioria entende que as eleições para deputado e senador são importantes. A mesma maioria, porém, demonstra ter visões equivocadas a respeito das funções dos deputados e valoriza comportamentos questionáveis de seus representantes
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