quarta-feira, outubro 06, 2010

Lírica do resto

Lírica do resto
Francisco Bosco – O Globo
Há na pichação uma força impressionante, de certo modo maior do que a da arte
Durante a Bienal de São Paulo de 2008, pichadores invadiram um andar e começaram a pinchá-lo. Houve choque com os seguranças, violência física e uma pichadora, Caroline Pivetta, foi presa (condenada a quatro anos, ela responde em liberdade). Para a Bienal atual, os curadores Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos convidaram um coletivo de pichadores para ocupar um espaço na mostra, procurando instaurar um diálogo. Mas os pichadores não respeitaram os termos propostos pela curadoria e voltaram a agir, a seu modo, invadindo e vandalizando a obra “Bandeira branca”, de Nuno Ramos. A repercussão foi intensa e muitas questões surgiram, sem que, até onde li, tenham sido propriamente enfrentadas. O que é a pichação? Pichação é arte? Pichação é crime? Um espaço dedicado à arte deve acolher a pichação?
Arte e pichação são dois sistemas fundamentalmente diferentes. A semelhança que mantêm é quase anulada pela diferença fundamental. A arte é um sistema simbólico, sublimador.
É, na imagem arquetípica da “Dialética do esclarecimento”, Ulisses amarrado ao mastro do navio para poder ouvir o canto das Sereias sem se jogar ao mar. A morte transformada em concerto, é isso a arte. Já a pichação é um sistema que opera, deliberadamente, com um nível mínimo de simbolização e sublimação. É uma prática do real, da violência. A sublimação é, para Freud, um destino social das pulsões. A pichação é o destino contrassocial das pulsões dos excluídos. A arte, mesmo quando crítica da sociedade, opera nos termos propostos pela sociedade, respeitando seus princípios fundamentais. A pichação, não: ela é pura negatividade, revolta sem conteúdo específico (sua forma é, por si só, contestatória), e desrespeita o pacto social.
A semelhança entre arte e pichação, entretanto, existe. Pichar tem uma dimensão construtiva, estilística (cada pichador inventa uma tag, pela qual será reconhecido), mas essa construção é decodificável apenas para o grupo dos pichadores. A sociedade agredida sente-se, por isso mesmo, agredida: porque é incapaz de ver ali o código, logo a construção. E é preciso que seja assim. Se a cidade, em geral, pudesse ler a pichação, integrá-la-ia de algum modo — e assim a pichação perderia em parte sua agressividade.
É por isso que o convite da Bienal aos pichadores tem algo de ingênuo, apesar das melhores intenções. Trazer o sistema da pichação para o da arte, mesmo pela via indireta dos vídeos e fotos, é uma maneira de dissolver a violência, real, que lhe é constitutiva, transformando-a em concerto visual. Não poderia dar certo, e não deu. A tentativa de integrar a pichação já existe, foi bem-sucedida e tem nome: grafite. O que na maior parte se nomeia hoje como grafite é uma astúcia do capitalismo. Ele é a resultante fraca de dois vetores: além da pichação e aquém da arte (com exceções, como a obra de Banksy ou d’Os Gêmeos, por exemplo). O grafite é a pichação permitida; essa sanção é a sua morte política.

E é também o que permite o refinamento de seu traço. O tempo de realização do grafite exige a legalidade.
Na sua economia interna, ele é análogo ao rap. Ambos estão numa escala avançada de sublimação. O rap é sublime (enquanto canção). A voz de Mano Brown é o terror transformado em distância, em virtualidade. Experimentar o terror sem se aterrorizar, é isso o sublime, na definição do filósofo setecentista Edmund Burke.
A pichação, não: ela é o terror bem próximo, precariamente sublimado. Sua escrita emerge da violência e a pratica no ato de escrever.
Esse é o ponto central da pichação. Ela é uma violência sublimada, passada à escrita, mas sem deixar de ser violenta. Essa ambiguidade é irredutível. Pichação é crime, é invasão e deterioração de propriedade privada, mas é escrita, e a escrita é uma forma de sublimação.
É nesse contexto estrito que se deve compreender a frase-emblema de Hakim Bey: “Arte como crime, crime como arte.” Crime e sublimação, ao mesmo tempo. Mas essa ambiguidade está sempre na iminência de regredir à violência pura de que se origina: humilhação social , miséria material, orfandade civil, choques violentos com a polícia ou com os donos das propriedades.
Daí o incontrolável constitutivo da pichação, que se mostrou como tal na ocasião da Bienal de 2008, com violência generalizada, ou na pichação de uma Faculdade de Belas Artes, apresentada como trabalho de conclusão de curso por Rafael “Pixobomb”, e que descambou para uma vasta pancadaria, como se pode ver no grande documentário “Pixo”, de João Wainer.
Cabendo a ele a decisão de dar ou não queixa sobre o pichador de sua obra, Nuno Ramos decidiu por não o fazer. Concordo com sua posição, e com os termos em que ele a justificou. Mas discordo quando ele diz não achar que a pichação de sua obra foi “uma questão de classe”. Pichar é uma questão de classe. É o resto da sociedade, que, como todo recalcado, retorna.
Há na pichação uma força impressionante, de certo modo maior do que a da arte (a força do não sublimado).
Para Marcia Tiburi, que dedicou um belo texto ao tema, “é a única lírica que nos resta”. É, seguramente, uma lírica única, uma lírica do resto.
A pichação é ilegal, mas é justa. Aos que me atacarem por esse paradoxo: não se pode exigir do pensamento que harmonize o que na realidade é dissonante.

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