sexta-feira, outubro 15, 2010

Religião e eleições

Religião e eleições
MARIA DAS DORES C. MACHADO – O GLOBO
A grande importância que o tema do aborto adquiriu no debate público e na agenda dos candidatos à Presidência antecipa os desafios a serem enfrentados pelos movimentos feministas no próximo governo, mas também põe em xeque uma série de ideias do senso comum sobre o universo evangélico brasileiro e, mais precisamente, sobre a atuação política dos pentecostais.
Um primeiro ponto a ser destacado se refere ao fato de que num pleito onde, pela primeira vez em nossa sociedade, duas mulheres disputaram a Presidência da República e receberam 66% dos votos válidos no primeiro turno, o avanço das conquistas feministas ficou ofuscado pela importância que passou a ter a posição e o engajamento dos líderes religiosos — católicos, espíritas, evangélicos — nas campanhas das duas candidaturas femininas e na discussão em torno do aborto.
Ainda que a posição em defesa da vida perpassasse os diferentes segmentos cristãos, deve-se registrar que no primeiro turno ocorreu uma divisão tanto entre os católicos quanto entre os evangélicos em torno das duas candidaturas femininas. No campo católico, enquanto alguns líderes — como o bispo da Diocese de Guarulhos, D. Luiz Gonzaga Bergonzini — manifestaramse publicamente contra Dilma e o PT pelas posições do partido em relação ao tema, outros membros da hierarquia católica, como o sacerdote Gabriel Cipriani, foram ao “Encontro de Dilma com os cristãos”, realizado em Brasília no dia 29 para tratar da temática, e gravaram depoimento de apoio à sua candidatura, afirmando acreditar no seu compromisso de manter o diálogo com os grupos religiosos em relação a esta questão.
No campo evangélico, caracterizado pela heterogeneidade e pela intensa competição entre os grupos confessionais, também se verificou uma profunda divisão, com alguns líderes apoiando Dilma e outros defendendo a candidatura de Marina Silva, uma pentecostal cujo partido tem uma posição bem mais liberal do que a de sua candidata.
Assistiu-se, por um lado, à distribuição gratuita para os fieis pentecostais de DVDs do pastor Silas Malafaia em templos do Rio, assim como do vídeo do pastor batista Paschoal Piragine Jr, do Paraná, pregando votos contra a candidatura que defendia o tratamento do aborto como uma questão de saúde pública. Por outro lado, constatou-se que cartas de apoio foram veiculadas em blogs e sites pessoais e institucionais, como a do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, e declarações de voto de confiança na candidata petista foram gravadas por parte de líderes das mais distintas denominações: um dos mais proeminentes é o pastor Manoel Ferreira, da Assembleia de Deus, demonstrando que o conservadorismo moral em segmentos pentecostais encontra no pragmatismo de líderes um poderoso antídoto para uma posição alinhada em favor da candidatura da “irmã” de fé, que desde o início de sua participação na disputa eleitoral deixou claro sua posição contra a descriminalização do aborto e afinada com os valores tradicionalistas do pentecostalismo.
Deve-se destacar ainda que Marina Silva, embora conte com inegável carisma e uma postura física mais próxima da base social do movimento pentecostal, partilhou com Dilma e Serra os votos dos eleitores pentecostais.
A votação da representante do PV, apesar do aumento surpreendente na última semana, não pode ser explicada apenas pelo voto evangélico. Se, para além da confissão religiosa, a história de vida de Marina apresenta pontos de contato com a da grande maioria dos pentecostais, o tamanho e a ideologia do PV serviram de contraponto na disputa dos votos nesse segmento social. Dito isso, argumento que a definição dos votos dos eleitores pentecostais passa por outras variáveis do que a simples confissão de fé do/a candidato/a.
Em suma, se os votos dos católicos, evangélicos e espíritas — grupos confessionais que tendem a ter posições mais inflexíveis com relação ao aborto — se distribuem entre os candidatos, não faz sentido os dois postulantes à Presidência caírem na armadilha de pautar o debate pelos temas morais que só interessam aos tradicionalistas e fortalecem os atores religiosos que procuram fazer de uma questão que atinge milhares de mulheres brasileiras uma moeda de troca no jogo eleitoral.
As trajetórias políticas de José Serra e Dilma Rousseff têm mais afinidades com a conquista histórica do Estado laico do que com a interferência das instituições religiosas na política institucional.
Da mesma forma, os dois candidatos têm clareza dos custos de uma legislação restritiva no campo da interrupção da gravidez para a saúde pública e sobre quem recai o ônus da criminalização do aborto e, por isso mesmo, não podem abandonar o compromisso com as mulheres mais pobres de nossa sociedade, as mais prejudicadas com o uso eleitoreiro do tema do aborto.
MARIA DAS DORES C. MACHADO é professora da UFRJ.

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