sexta-feira, outubro 15, 2010

Uma viagem ao interior

Uma viagem ao interior
Milton Hatoum
Não conhecia Alumínio, um município paulista perto de São Roque, que todos conhecem por ser uma cidade histórica cercada por serras. No passado, esse relevo verde fazia parte da mata atlântica. Hoje, apenas um parque sobreviveu a essa floresta. Fundada há mais de quatro séculos por bandeirantes, a história de São Roque - capela, fazenda e escravos - diz muito sobre a história de São Paulo e do Brasil.
Mas Alumínio, muito mais recente, também tem uma história. A diretora da biblioteca me mostrou com orgulho várias fotografias antigas de seu município. Vi a estação ferroviária de Rodovalho, construída em 1899; vi a imagem de um trem que atravessava o vale; vi trabalhadores negros vigiados por um capataz que, na foto, estava de costas e usava um chapéu branco; vi enormes manchas escuras que formavam a mata exuberante das serras. E quando olhei através da janela da biblioteca, vi um relevo de eucaliptos, como se fossem bosques tristes na paisagem de Alumínio.
Perguntei à diretora da biblioteca quem tinha sido Rodovalho. O dono de uma fábrica de cimento, ela disse. Depois acrescentou: coronel Rodovalho: Antônio Proust Rodovalho.
Proust?, perguntei, soletrando o sobrenome do grande escritor francês.
Proost, ela soletrou, mitigando minha obsessão pela literatura.
O que pode fazer uma única vogal! Olhei o céu acinzentado de Alumínio e, sob esse céu cor de cimento, avistei um amontoado de casas inacabadas, erguidas na mesma serra que acabara de ver numa das fotografias antigas. Disse a mim mesmo que a paisagem urbana não é menos tenebrosa que a natureza devastada. E perguntei à diretora como se chama aquele bairro que crescia na serra.
Alvorada, ela respondeu. Os estudantes já chegaram, mas ainda temos tempo para um café.
Tomei um gole, e enquanto relia o roteiro da minha palestra, a chuva caiu com um estrondo. Gotas grossas, pesadas e ruidosas, que desabavam inesperadamente e me recordaram a chuvarada no equador e o cheiro da floresta.
Alvorada é também o nome de um bairro pobre de Manaus, um bairro que eu havia esquecido e agora reaparecia na minha memória, com suas casas de madeira amontoadas à beira de um igarapé sujo. Nas tardes de sábado eu dava uma carona para Eliandra, a faxineira do edifício onde eu morava. Entrava no bairro, um labirinto de ruas estreitas e esburacadas, e deixava Eliandra perto de uma escada íngreme, que ela subia até alcançar uma rua de terra no alto de um barranco. Uma tarde quis visitar sua casa, ela me disse: no próximo sábado.
Eliandra me disse que morava com um motorista de caminhão, mas não conheci esse motorista. Conheci a casa de madeira, cuja fachada de tábuas empenadas e sem pintura debruçava-se sobre um abismo. Eliandra me serviu café e bolo de macaxeira. Abriu um álbum, onde vi imagens de passeios pelo Rio Negro, ela e o motorista no convés de um barco de linha. Eram felizes, ou pareciam felizes naquele passeio. A casa era apenas um quarto, uma saleta e uma cozinha. O banheiro ficava do lado de fora e não havia esgoto. Perguntei se ela estudava ou se tinha estudado, e ela disse não. Depois disse: mas quero muito. Sabia costurar: nossa roupa, as cortinas, as toalhas de mesa... Costuro qualquer coisa, disse Eliandra. E num sábado, quando dei a última carona, ela me revelou que morava sozinha, o motorista tinha sumido no ano passado: foi embora sem me dizer uma palavra. Nem um bicho faz isso. Chorou quando eu disse que ia morar longe de Manaus. Mas quis ficar com o meu gato de estimação e prometeu que ia cuidar dele. Como se fosse meu, ela disse.
Quando a chuva parou, tomei mais um gole de café e me dirigi ao auditório da biblioteca de Alumínio.
E assim começou minha viagem literária pelo interior de São Paulo.

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