segunda-feira, outubro 04, 2010
O meu português ruim
O meu português ruim
Caetano Veloso – O Globo
É inacreditável que Barbara Heliodora tenha escrito que um autor teatral não pode usar o tratamento na segunda pessoa. E muito significativo que ela tenha lançado esse anátema como condição para que uma peça se considere brasileira. É a mesma mentalidade que leva um tradutor de Proust a evitar a palavra “raparigas” e tradutores de textos complexos a correrem da tmese como o diabo da cruz. Até parece que estilos nascidos desse tipo de pânico primam pela clareza e pela elegância.
Mas não. Leem-se textos onde o único mérito parece ser o do esforço para evitar mesóclises e segundas pessoas. Erros variados e escorregadelas para a pedanteria não são sequer notados por muitos dos que se contorcem nesses dribles. Outro dia, por causa de meus protestos contra o medo da mesóclise, recebi alguns e-mails corrigindo minha suposição de que talvez algo do problema se devesse às campanhas dos sociolinguistas. Dei razão aos que me corrigiram. Mas a verdade é que esse à vontade com que Barbara Heliodora proíbe o uso do tratamento em segunda pessoa não pode deixar de se dever, em parte, a tal campanha. É difícil que simplesmente coincida com ela.
Quando eu mantinha um blog para acompanhar a feitura do projeto “Zii e Zie”, disco e show, escrevi, em tom ainda mais apressado e irresponsável do que o faço aqui, sobre as perguntas que me fiz ao ler um bom livro sobre tendências do português brasileiro.
Como a descrição da frequência do uso do “você” levava a autora a expor os pronomes pessoais sujeitos como sendo “eu, você, ele, ela, nós, vocês, eles, elas”, em vez de “eu, tu, eles, nós, vós, eles”, fiquei com a impressão de que se sugeria que passássemos a ensinar nas escolas esses pronomes mais usuais — e as variações verbais que os acompanham — e abandonássemos o “tu” e o “vós”, que não usamos na conversa.
Descrevi o mal-estar que isso me provocava e enumerei as várias formas conversacionais em que a segunda pessoa do singular é usada comumente.
Do “tás me estranhando” carioca ao “viste” (ou “visse”) pernambucano; do “tu é mesmo mané”, também do Rio, ao “tu fala demais” dos gaúchos. Lembrei que em Belém do Pará se flexiona o verbo para a segunda pessoa com considerável frequência.
E mencionei o fato de que as crianças entendem perfeitamente bem o que quer dizer um samba-canção ou um rock-balada em que o cantor se dirige à amada na segunda pessoa. Isso sem falar nos textos eruditos.
Por causa da reação de alguns comentaristas do blog, fui ler os sociolinguistas militantes — esses que odeiam os professores que ensinam regras de português em jornais ou na TV. Percebi que há uma confusão entre observar como a língua muda e querer desfazer toda a normatividade já consagrada. A explicação era sempre que a norma culta é uma espécie de ideologia da classe dominante que oprime os desassistidos.
Nunca passava pela cabeça desses heróis que essa norma tinha se desenvolvido pelo mesmo processo para o qual eles querem chamar a atenção no presente. O povo é o inventa-línguas. A contribuição milionária de todos os erros. Sim. Mas desde sempre. Por que desqualificar a contribuição de milhões de falantes do português que, através dos séculos, nos trouxeram até onde a língua se encontra agora? Então a ideia é que só valerão as regras que se criarem a partir do surgimento de uma sociedade justa e sem classes? Quando é mesmo que vai ser isso? É simplesmente ruim desistir de adestrar nosso povo para o entendimento da nossa língua em todos os seus registros. O português lusitano e o africano, o do sertanejo iletrado e o do doutor em sociologia, o do poeta renascentista e o do teatrólogo moderno, o do cientista e o do sacerdote.
Eu próprio não me sinto seguro ao escrever. Cometo erros de ortografia. (Numa resposta a Xexéo — cujo nome já está quase passando o de Liv Sovik em frequência aqui nesta coluna — na época do réveillon em que, no “JB”, eles criaram uma maluquice envolvendo Paulinho da Viola, escrevi “analizar” — ou algo equivalente.
Sem memória visual de como era a palavra, segui ( s e m p e n s a r ) uma regra abstrata (isso acontece menos em inglês ou em francês, mas não vou explicar agora por quê). Xexéo, mais uma vez, zombou de mim. Bem feito. E muitas vezes me vejo enrolado na construção de uma frase.
Mas amava meu professor de português do Ginásio Teodoro Sampaio, Nestor Oliveira (poeta de olhos azuis e voz bonita) e Dona Candolina (preta gorda competentíssima e energética), do Severino Vieira. E gosto de literatura e de que o acaso tenha feito com que falemos português.
Em Londres, quando chegou o disco de Roberto Carlos que tinha “Detalhes”, ouvi a canção com respeito e frieza.
Mas quando veio o verso “E até os erros do meu português ruim” eu caí no pranto.
Alguém dirá que tenho chorado demais aqui — e sempre por causa de música.
Mas é assim. Não quero entrar no mérito da crítica de Barbara Heliodora aos arranjos que Jaques Morelenbaum e Jaime Alem fizeram para as música de Tom: não vi o “Orfeu” no Canecão (estou em São Paulo), de modo que não sei se a shakespeariana crítica sentou-se perto de algum alto-falante rachado.
Nem quero pensar nisso para não chorar de novo.
Mas o “tu” dos versos e das canções não pode ser anatemizado por um preconceito mais idiota e opressivo do que o que pareceu ser o meu quando disse, numa entrevista até bem razoável, que Lula é analfabeto.
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