segunda-feira, outubro 04, 2010

Rasuras e borrões

Rasuras e borrões
EDITORIA - FOLHA DE SÃO PAULO
Falhas do Legislativo e indecisões da Justiça quanto à Ficha Limpa atropelam o calendário e criam incertezas sobre resultados eleitorais
Quem não foi aluno impecável, nos tempos de escola, certamente se lembra de ter passado longas tardes fazendo e refazendo certos deveres de casa -problemas de matemática, trabalhos de desenho geométrico- que nunca chegavam ao resultado desejado. Corrigia-se a conta, passava-se a borracha, o papel ia ficando amassado e o que por fim se apresentava ao professor era a cópia borrada, quase ilegível, de um trabalho mal encaminhado e de soluções mal concebidas desde o início.
Com o projeto da Lei da Ficha Limpa ocorreu algo semelhante. Não é responsabilidade direta de ninguém, na verdade, que se tenha chegado ao dia das eleições sem saber, afinal, o que vale e o que não vale na legislação.
A expectativa de contar-se com um instrumento legal para barrar os casos mais caricatos de corrupção na política brasileira exerceu, sem dúvida, pressão eloquente sobre o Congresso e o Judiciário.
O fenômeno de opinião pública, positivo em si, teve um efeito colateral. Qualquer ponderação que se antepusesse à Lei da Ficha Limpa soou como complacência diante da corrupção.
O documento teria de valer já nestas eleições: mas estas correm segundo um calendário que não é o da Justiça.
Argumentos complexos com respeito à constitucionalidade da lei tiveram de ser debatidos em pleno andamento do processo eleitoral; pior, por um Supremo Tribunal Federal dividido ao meio na sua avaliação sobre um caso concreto. E também dividido, o que é natural num caso desses, entre a pressão da opinião pública e a necessidade de seguir princípios rigorosos de técnica jurídica.
Criou-se a situação bizarra de uma candidata de última hora aparecer em debates, sem ter nem sequer seu nome no terminal eletrônico de votação; Weslian Roriz, mulher do postulante ao governo do DF Joaquim Roriz, passou do anonimato para o vexame público. Trocou-se uma ficha suja por um papelão.
O embrulho, entretanto, vai ficando maior ainda. Os votos conferidos aos "fichas-sujas" serão considerados nulos; caso vençam recursos posteriormente, esses candidatos poderão ser eleitos, e com isso irão alterar-se os coeficientes -e a vagas- de cada partido no Legislativo.
Houve ainda outra polêmica, resolvida em fim de expediente: a da exigência de título eleitoral para apresentar-se à votação. Muitos eleitores chegaram ontem às urnas, portanto, sem saber se estavam eles próprios -para não falar dos candidatos- com os papéis em ordem.
Uma lei já defeituosa em sua formulação, destinada a prevenir candidaturas de corruptos, se torna uma guilhotina emperrada. Juízes acabam sendo improvisados em legisladores, a mulher de um candidato se transforma em candidata, a lei eleitoral é modificada num rabisco de última hora. A Lei da Ficha Limpa se torna, enfim, como diria até o menos severo dos professores do ginásio, um trabalho ilegível, tantos os borrões, as rasuras e vacilações de que se cobriu.

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