terça-feira, outubro 12, 2010

Por que tanto ódio

Por que tanto ódio
Na política, só o verbo importa, a ação é secundária. E o povo espera dos dirigentes uma palavra de sintonia
Michel Maffesoli, Jornal do Brasil - 12/10/2010 06h55
É impossível recusar a dicotomia entre inferno e paraíso? Podemos, como os humanistas do Renascimento, abordar um fenômeno sine ira et odio? Como decifrar o efeito que Sarkozy provoca, em alguns – as elites educadas –, tantas reações histéricas, e em outros (este povo tão preocupante) um acordo explícito ou implícito? Claro, podemos taxar de populismo o fato de suas declarações ultrajantes e aguerridas contra os  Roms ou os “bandidos” reconfortam aqueles que convivem diariamente com eles. De certa forma, é a injúria como catarse da violência.  Mas podemos igualmente observar que estamos diante de um fenômeno de participação mística de um chefe atualizado com as reações populares. Um Sarkozy está lá, atualizado com o lençol freático que são as massas populares, mas que não corresponde em nada ao que as elites. em sua maioria, gostariam de ouvir, de entender, de interpretar.
É preciso retomar aqui a distinção proposta por Auguste Comte, entre “país legal” e “país real”. Oposição frequente nas histórias humanas, sob diferentes nomes: a que sublinha o desacordo profundo entre o povo e os seus representantes. Desacordo ou desamor permitindo a emergência de novos líderes que, por sua vez, “sentem” o que convém dizer e fazer.  Líderes populistas? Carismáticos? Demagógicos? Depende do momento. Em todo caso, são sempre indícios flagrantes de que um ciclo se encerra, e com ele uma maneira de fazer política, de pensar a política. Podemos traduzir em nossos dias a distinção comteana apontando um fóssil intransponível entre opinião “publicada” e opinião pública – esta não se reconhecendo em nada daquilo que é publicado.  
Resulta daí uma pergunta simples: por que tanto ódio em relação ao presidente da República? Talvez porque aquilo que tanto irrita a opinião pública esteja em perfeita congruência com a opinião pública. É verdade que, para dizer em uma expressão mais coloquial, há “altos e baixos” nas pesquisas. E com razão, já que a versatilidade é uma das características essenciais da opinião pública.  Mas, fundamentalmente, Sarkozy, com seus aspectos mutáveis, sua sintaxe aproximativa, sua teatralidade vidente, com seu lado “m’as-tu vu”, através de um desejo de gozo aqui e agora, não faz mais que estender um espelho,  no qual o povo entretido pode ver o reflexo de sua alma coletiva. Ele é, por si só, uma autobiografia do povo!
Este é o segredo de seu magnetismo. Basta que ele se desloque para o interior do país, que visite uma usina, faça de conta que se interessa pelos camponeses ou percorra os corredores de um hospital para que seu carisma funcione.  Sua presença, apesar ou graças a seus defeitos e imperfeições, suscita uma “participação mágica”. É assim que etnólogos, como Lévy-Bruhl, designavam este “não-sei-quê”, esta coisa imaterial, imponderável, que escapa a toda estatística, assegurando a coesão de uma comunidade, o sentimento de pertença,  fazendo de conta que há um vínculo, uma ligadura social.
É preciso, de fato, aproximar o fazer e o dizer de Nicolas Sarkozy dos processos religiosos ou mágicos. A palavra, o verbo, a atitude têm, de certa forma, uma força própria, sejam eles seguidos ou não de decisões. Quando Sarkozy explica que é preciso “limpar a cidade no Kärcher (lavadora de carros)” ou “desmantelar os acampamentos irregulares” ou, ainda, durante o seu discurso de  Grenoble, “declarar guerra aos bandidos”, não se trata de um ato elaborado de agressão aos “viajantes” ou “selvagens”. Trata-se, simplesmente, de uma reação, uma ação de resposta. Ação que se baseia inteiramente na potência do verbo, que faz eco às palavras que gostariam de pronunciar, no mesmo instante, aqueles que não podem mais viver ali. 
Como seria bom se bastasse uma passagem ao Kärcher, ou distribuições de pacotes de 300 euros para resolver as dificuldades do viver-junto cotidiano. A passagem do Kärcher é o que faz eco a essa “preocupação” constante, mesmo que inconsciente, de limpar os grutões, as garagens, os outros lugares sujos. Uma tal limpeza se parece com o esplendor de um ostensório, com o fogo purificador, enfim, com a cerimônia arquétipa de todo exorcismo.  Sabemos que ele só tem realidade no instante da cerimônia.
Assim, pouco importam as promessas ou ameaças. Estas não foram feitas para serem mantidas. Basta, a um homem político, saber servir-se, com força, de uma imagem ou metáfora que qualquer um possa compreender ou gostaria de dizer naquele momento. E sem que isso tenha consequências. Na política, que nada tem a ver com moral (fato que esquecemos frequentemente), apenas o verbo importa, a ação é secundária! É preciso ter a lucidez de reconhecer que o que o povo espera dos dirigentes é uma palavra que esteja em sintonia com o modo como ele vive. Que ele esteja à escuta. Lição fundamental deixada por Heidegger em Ser e tempo: “Compreender é vibrar”.  Trata-se de uma constante antropológica.  A verdadeira potência dos chefes, sejam os das diversas tribos indígenas ou os muitos presidentes da República (De Gaulle ou Mitterrand são exemplos acabados), é antes de tudo a do “verbo”.
Esta é a intuição de um presidente. Desde então, negócios de todos os tipos podem entreter a crônica, artigos vingativos ou arrastar na lama – nada disso tem muita importância, a partir do momento em que, por uma graça misteriosa, a simples existência de um Sarkozy, não tendo que fazer análises muito racionais, é fonte de inspiração para um desejo de gozo, para o hedonismo imediato que, para o melhor e o pior,  caracteriza o espírito do nosso tempo.
Michel Maffesoli* Instituto universitário da França

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