sexta-feira, outubro 08, 2010

Havia uma eleição entre as luzes e as trevas

Havia uma eleição entre as luzes e as trevas
Maria Cristina Frias - Folha de S. Paulo - 08/10/2010
Da mesma maneira que a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva não se explica pela aliança entre Febraban e Bolsa Família, a explicação de que o voto Marina Silva deriva do casamento entre as luzes da modernidade e as trevas da religião padece de reducionismo. Quem cair nele pode sair deste segundo turno menor do que entrou.
Só as marchas gays têm competido com pentecostais e carismáticos na lotação de ruas e estádios Brasil afora. E não parece crível que petistas tenham descoberto, à meia-noite do domingo, que aquelas plateias são milhares de vezes superiores a quaisquer comícios de que Lula já tenha participado.
Essa constatação não autoriza a crença de que o Brasil de hoje seja mais fundamentalista do que aquele de 2002. Seria preciso aceitar que a adesão religiosa flutue ao sabor do vento. O eleitor teria sido fundamentalista em 1989 quando Lula foi acusado de sugerir o aborto de sua filha, recuado em 2002 e 2006 e retomado com fervor sua fé religiosa agora. Nem se os fiéis fossem medidos pelos institutos de pesquisa seriam tão volúveis.
O avanço do pentecostalismo e dos carismáticos nas duas últimas décadas não impediu que oito anos tucanos fossem sucedidos por outro tanto de petistas. É uma fé que cresce com o individualismo. E nisso não diverge da política desses últimos 16 anos.
O avanço religioso nas emissoras de rádio e TV e no Congresso só se traduz em fundamentalismo pelo fermento da insegurança. E que outra sensação a candidata do PT passou ao eleitorado com o batizado de seu neto de apenas 20 dias 48 horas antes do primeiro turno? À saída da igreja, Dilma Rousseff fez a inacreditável declaração: "Meu neto tinha de ser batizado. É a religião da minha família e a minha também".
Na segunda-feira, Maria Aparecida, ajudante de limpeza numa empresa de São Paulo, fazia a tradução: "Ela vai acabar com a religião dos crentes". Eleitora de Dilma, junto com sua família e até onde a vista alcança sua vizinhança, dona Cida era a imagem da desolação. Durante a campanha, exibia o orgulho de seu lulismo e da perspectiva de uma mulher ao poder. Votara em Dilma, mas, apurados os votos, parecia arrependida, já não sabia o que fazer no segundo turno e falava com desdém do oportunismo eleitoral da busca pelos votos de Marina.
O que aconteceu domingo não foi o predomínio da religião sobre a política, mas o amálgama de difusas insatisfações canalizadas para Marina.
Tome-se, por exemplo, Brasília, a capital do marineiros. Talvez nenhum eleitor conheça tanto quanto o brasiliense o esquema de tráfico de influência montado por Erenice Guerra, à sombra do presidente e de sua candidata.
Os recordistas de voto no Distrito Federal foram Marina e um deputado federal que é a síntese de sentimentos desencontrados que a política partidária tem tido dificuldade em captar. Recordista proporcional de votos (18%), José Antônio Reguffe (PDT) não tem vinculações religiosas ou corporativas aparentes. Fez fama nos escândalos que derrubaram José Roberto Arruda com medidas como corte de verbas de gabinete. Quer políticos de um mandato só e acha que Tiririca existe porque o voto é obrigatório. Não é um voluntarismo que combine com a carreira de Marina, mas não é difícil imaginar por que reúnem o mesmo tipo de eleitor.
O Nordeste, que se acreditava de porteira fechada para Dilma, também deu excelentes votações para Marina. Havia brechas aparentes na porteira que foram ignoradas. À obra do artista pernambucano Gil Vicente na Bienal de São Paulo só se deu importância pela tentativa de a OAB paulista censurá-la . Obra mais polêmica da exposição, 'Inimigos' traz FHC, Bento XVI, Bush, Lula e Ariel Sharon sendo executados pelo artista. Os 36,7% dos votos de Marina no Recife mostram que o artista captou algo que o PT não farejou.
Por que Dilma não conseguiu empatar com Eduardo Campos no Estado em que um aliado de Lula teve a melhor votação do país (82,8%)? Primeiro governador a se eleger vencendo em todos os municípios do Estado, arrancou desde 99% dos votos na pequena Calumbi até uma inédita declaração de apoio da federação das indústrias . Uma resposta possível é que Campos construiu carreira ampliando sua base política de baixo para cima sem se render ao messianismo.
No início da campanha, o PT temia que a exploração do passado de guerrilheira fosse o maior nó a ser desatado na imagem de Dilma. O ataque acabou vindo pela cruz, mas a reação amadora dos petistas indica que a abordagem messiânica da relação do presidente com o eleitor desarmou a campanha para enfrentar a concorrência. O deus do povo é outro.
Este segundo turno corre o risco de levar o país a retrocessos se a amplitude que se dá ao fundamentalismo religioso não for enfrentada pela política. Vide a declaração de um pastor da Assembleia de Deus e deputado do PRTB fluminense à repórter Paola de Moura (Valor, 7/10), de que Dilma precisará assinar uma carta de compromisso contra temas polêmicos. Depois da Carta ao Povo Brasileiro de 2002, a ameaça da vez é de uma ode ao obscurantismo.
O PSDB foi vítima da mistificação petista no segundo turno de 2006 em torno da privatização. E dá indicações de que pretende dar o troco sem uma sinalização clara do eleitor que pretende conquistar com a indecifrável declaração de Serra: "Nunca disse que sou contra o aborto porque sou a favor, ou melhor, nunca disse que sou a favor, porque sou contra".
Sempre tratados como peça de ficção, programas de governo são a melhor vacina contra a mistificação. A secretaria de direitos humanos foi o refúgio escolhido por Lula para abrigar a esquerda do seu partido, desalojada que fora da política econômica, agrária e ambiental. Mas se seu governo não produziu consenso à descriminalização do aborto, o rol de alianças de Dilma também não o permite. Tivesse programa claro sobre o assunto, a petista não teria ficado refém da marquetagem emergencial que agora recomenda entrevistas dentro de capelas.
O mesmo vale para Serra, outro sem-programa que entra no segundo turno sem que seu eleitor saiba se vai sucumbir à nova onda da privatização mistificada. Tanto um quanto o outro terão muito a ganhar fazendo concessões à Marina. Difícil mesmo vai ser conseguir dar alento à Dona Cida.

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