sexta-feira, outubro 08, 2010

A Igreja, o aborto e o excesso da retórica

A Igreja, o aborto e o excesso da retórica
Mauro Santayana – Jornal do Brasil
Ao falar ontem, no Rio de Janeiro, o presidente Lula foi traído pelo arroubo, e disse que, “agora, a polícia bate em quem deve bater”. O presidente se equivoca: a polícia não deve bater em ninguém. O máximo que pode ocorrer é o exercício inevitável da violência dos agentes do Estado, nos atos legítimos para vencer a resistência à prisão, ou responder à iniciativa de agressão da parte dos criminosos ou suspeitos. Quando o próprio chefe de governo aceita a ideia de que a polícia pode “bater”, os cidadãos se sentem ainda mais inseguros. Se a ideia fosse correta, como a polícia poderia saber quem deve e quem não deve apanhar?
A polícia não tem o direito legal de punir; quem pune é a Justiça, e em nossa legislação penal nenhum castigo corporal é previsto. Apesar disso, é sabido que a tortura continua a ser praticada em nosso país, mesmo sendo crime hediondo e imprescritível pela Constituição. Em nome do combate à delinquência vulgar, suspeitos são espancados nas delegacias policiais, com métodos que não deixam vestígios, mas arrasam a vítima.
Admita-se que o tudo ou nada da disputa final da sucessão presidencial tenha afrouxado a prudência de Lula. Espera-se que ele tome mais cuidado com a retórica nestas três semanas e algumas horas que restam para o proselitismo eleitoral. E que os seus adversários façam o mesmo. Não podemos acirrar os ânimos, nem permitir que, à falta de ideias e de projetos, a disputa se faça com a demagogia das promessas e a irresponsabilidade das ofensas.
As igrejas, a pretexto da questão do aborto, envolvem-se no processo político, e isso não é o melhor. Recorde-se que a Igreja Católica, dominada pelos católicos ultramontanos e futuros integralistas, fundou, em 1932, com as bênçãos do Cardeal Leme, arcebispo do Rio, a Liga Eleitoral Católica, que teve grande influência na ascensão do integralismo. Em 1950, com o apoio escancarado do Cardeal Jaime Câmara, sucessor de dom Leme, a LEC se pôs contra a eleição de Getúlio. Era, então, entidade para-partidária, linha auxiliar da velha UDN. Com a assistência, laica e interessada de Carlos Lacerda, fez o que pôde contra o grande estadista e contra a esquerda, mas se deu mal. Poucos foram os seus candidatos que receberam os sufrágios do povo.
O aborto voluntário – contra o qual o colunista sempre expôs sua opinião – é realmente um crime, a não ser em situações gravíssimas, que o podem exculpar. Em qualquer caso, a mulher que a ele recorrer, quase sempre miserável, deverá ter a assistência hospitalar garantida. Mas há crimes tão abomináveis contra a vida, que não merecem o mesmo cuidado. Muitas crianças, desejadas ou indesejadas, resultado de casamentos sólidos ou de encontros fortuitos e irresponsáveis, morrem logo depois, assassinadas pela miséria, abatidas por balas perdidas ou dirigidas, trucidadas pelos pais, consumidas pelas drogas. É para salvá-las da morte que deve, prioritariamente, cuidar o Estado.
Toda criança é igual promessa para a Humanidade. A mais bela lição em favor da vida foi a de José, o carpinteiro. É provável que, em sua singeleza, duvidasse da origem, que lhe diziam divina, da gravidez de sua mulher, ainda intocada por ele, mas não titubeou em aceitar a vida do nascituro, a quem protegeu contra o poder de Herodes, salvando-o na fuga para o Egito.
É melhor retirar da pauta eleitoral um assunto tão sério, que está muito acima do efêmero poder do Estado, e, com todo o respeito, das razões mundanas e da inteligência interessada dos candidatos.

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